24 março 2010

Mozart no jazz, o jazz em Mozart


A maior prova de que o jazz é uma forma de pensamento musical e não um ritmo ou estrutura pré-definida são as gravações de jazzistas que releem os clássicos eruditos à luz do gênero jazzístico. 

Obviamente não basta improvisar sobre um tema de Mozart para se tornar jazz. Vários concertos do músico austríaco continham passagens improvisadas, chamadas cadenzas (cadências), em que o intérprete pode optar por seguir o que está escrito ou criar novas frases sobre a harmonia. O mestre Chick Corea improvisou todas as cadências no Concerto para Piano e Orquestra em Ré menor (K.466) e no Concerto para Piano e Orquestra em Lá maior (K.488) no disco "The Mozart Sessions". Continou sendo uma gravação maravilhosa, mas de música clássica. 

No disco "Jazz Mozart", o pianista novaiorquino John di Martino seguiu um caminho diferente. Acompanhado do baixista Boris Kozlov e do baterista Ernesto Simpson, Martino deixa a orquestra clássica de lado e dá um interpretação jazzística a músicas conhecidas de Mozart. Toques latinos, valsas sofisticadas, baladas serenas e incrível abordagem moderna das belas melodias mozartianas (como a Sinfonia #40) tornam o disco irresistível. 

Heitor Villa-Lobos utiliza a canção tradicional "Ciranda-Cirandinha" para escrever o "Polichinelo", uma das mais difíceis execuções pianísticas. John di Martino recria as obras de Mozart com um moderno trio de jazz. A genialidade não se encontra no material musical, mas em como se trabalha. O jazz é assim.

O que define o jazz? Discos como esse nos fazem pensar. "Jazz é tudo o que tem improviso". Será? Não pode ser, pois há músicas de origem judaica, africana e asiáticas que são puramente improvisadas e não têm nada da carga expressiva do jazz. Por outro lado, a adoção de uma instrumentação estilosa (piano-baixo acústico-bateria-guitarra acústica-saxofone) também não quer dizer nada se não há improviso, como é o caso de Norah Jones, uma boa cantora com um approach mais cool, mas que acrescenta pouco suíngue às canções. Ser negro - herdeiro das tradições negras devido à herança étnica - também não é condição sine qua non, ou os saxofonistas Michael Brecker e Joe Lovano - brancos como talco - não poderiam ser considerados os herdeiros naturais do trono de John Coltrane. 

Talvez uma das chaves para se compreender (e se fazer) o jazz esteja no blues. "You gotta get the blues", baby. O blues é uma das mais paradoxais formas de expressão artísticas. O bluesman canta a tristeza, o luar frio, a dor de cotovelo, o amor impossível, em melodias de indefínivel caráter. Ora soam tristes, ora soam alegres, devido à presença da famosa terça menor que veio das escalas pentatônicas africanas,  que não se afinam de acordo com a escala ocidental. Parecem sempre um pouqinho fora do tom, fora do contexto, trazem um elemento desconhecido, caótico, para o universo "quadrado" da harmonia tonal. Isso empresta um sabor sofisticado, nostálgico, pungente, energético e vital à música, e é a principal via de acesso para a compreensão do jazz. 

Toda uma forma de improvisação que foi sendo criada e moldada sobre esta sonoridade. A linguagem do jazz: essa se molda e se modifica desde então. Mais de 100 anos de história. Em alguns períodos dessa trajetória, vários artistas perceberam a possibilidade de reexaminar o repertório clássico europeu com as sonoridades fornecidas pelo jazz. Gunther Schuller, o alemão que inventou a Third Stream; Claude Bolling, o pianista que criou "jazz-concertos" para piano e flauta, piano e violão, piano e trumpete; o Modern Jazz Quartet, que abordava standards de jazz com tamanha delicadeza que só realizava shows em palcos de teatro; o pianista Keith Jarrett, que escreveu concertos para cordas e saxofone improvisado; o pianista Joe Sample, que fez versões disco para temas barrocos; e uma infinidade de outras aventuras semelhantes. 

A verdade é: se ninguém dissesse que é Mozart, você iria ouvir o disco como se fosse um excepcional disco de jazz moderno - ponto para di Martino, que caprichou nos arranjos. Só iria se surpreender com a extrema qualidade das melodias - ponto para o eterno Mozart.



 Jazz Mozart - John di Martino's Romantic Jazz Trio (Venus Records, 2007)


John di Martino (piano); Boris Kozlov (baixo);  Ernesto Simpson (bateria)



1. The Fire of Passion (Piano Concerto #24 in C minor, K491); 2. Soft, Like the Petals of a Rose (Piano Concerto #21 in C Major, K467); 3. Desert Journey; 4. I've Lost Her (The Marriage of Figaro, K492); 5. Fantasy in D minor, K397; 6. My Heart Needs to Know (Piano Concerto #27 in Bb Major, K595); 7. Lacrymosa (Requiem, K696); 8. The Willows Song (Concerto for Clarinet and Orchestra in A Major, K622); 9. Dance of the Wind (Symphony #40 in G minor, K550); 10. Arc of Love (Piano Concerto #23 in A Major, K488)

3 comentários:

  1. Muito boa a proposta do seu blog, não só falar de música mas tb expor opiniões.

    Já estou seguindo.
    Abç!

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  2. obrigado Rodrigo, aos poucos vamos colocando aqui um pedacinho da nossa cabeça e do coração. Os downloads são brinde, hehe.

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  3. Caro Murilo,
    Não conheço esse disco, mas parece maravilhoso. A mistura de jazz com música erudita dá samba - o Steve Kuhn às vezes se arrisca nessa seara, com resultados sempre muito legais (há uma versão do Lago dos Cisnes no álbum Pavanne For a Dead Princess que é estupenda). E o Jacques Loussier tem vários discos dedicados a interpretar, jazzisticamente, a obra dde Bach, talvez o mais jazzy dos compositores eruditos.
    Abração!

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