29 junho 2010

O paradoxo do bar com música ao vivo















O papel da música na sociedade mudou. As mudanças culturais e tecnológicas transformaram a experiência musical. Se antes só havia música em ocasiões ritualísticas ou comunitárias, onde ela ocupava lugar central – ritos sagrados em torno de uma fogueira, noites de viola e causos, concertos em cortes ou teatros, bailes populares, festas típicas, reuniões em botecos, capoeiras, carnavais – hoje a música disputa espaços cotidianos onde ninguém pensaria em ouvi-la: estações de metrô, esquinas de cidades, palcos improvisados em shopping centers, mezzaninos de padarias, portarias de prédio, supermercados e... bares.

O leitor pode estranhar a inclusão dos bares entre os estabelecimentos considerados “amusicais” que hoje abrigam manifestações musicais, mas há uma razão simples para tal classificação: bar é lugar de encontro, não de música. De encontros musicais às vezes, sim, mas apenas algumas vezes. Alguém trazia um pandeiro, um violão, um acordeon, ou tinha um bom cantor que se exibia para as outras mesas, mas nada planejado. Tinha um piano no canto esperando por um tocador. Via de regra, bar é lugar para consumir bebidas e jogar conversa fora, e tudo o mais que acontecer a partir daí. Música no bar costumava ser consequência de um encontro – entre uma conversa e outra, surgiam as afinidades para tocar, as disposições para ouvir. E pronto.

A sistematização desses “encontros” musicais pelos bares gerou a demanda pela contratação de artistas para se apresentar regularmente – pianobares, por exemplo. Novos palcos para os artistas, novos espaços disponíveis para o público. Mas o modelo “bar com música ao vivo” se banalizou, e levou a uma situação lamentável: clientes que entram no bar e não sabem quem está tocando, e artistas executando o mesmo repertório que já ouvimos em outro bar na semana passada. Ao invés de acontecer uma retomada das velhas formas de se vivenciar a música – como artigo de ritual, de celebração, de senso de comunidade -, o bar promoveu apenas a música como um produto, um acessório na noite, assim como serviço de manobrista. O encanto do encontro da arte com a platéia já não existe.

Só há música se alguém escuta. No bar, alguém realmente escuta alguma coisa que não seja a conversa? O modelo “bar com música ao vivo” surgiu de um equívoco, pois os bares abandonaram o conceito de show. O show é um momento mágico, em que a arte nasce a partir de uma confluência de disposições, interesses comuns, trocas. Para ser mágico, o show precisa ter um contorno. Um início, um meio, um fim – o que significa que tem que ter roteiro, produção, estrutura, senão não tem força, não tem fôlego.

Pra começar, a maioria dos bares não tem palco. Quando tem, não tem som (o artista leva). Se tem som, não tem luz (e o artista não leva porque não tem dinheiro pra bancar essa produção). E quando tem tudo isso, o bar não coloca nem uma placa na frente para informar aos clientes o que vai acontecer por ali. O artista sobe no “palco” e tem que se virar para chamar a atenção. O show começa com total desconhecimento da platéia, e o único recurso pra chamar a atenção é aumentar o som do P.A. Mas também não pode, porque atrapalha a conversa e incomoda os vizinhos do bar.

O paradoxo começa: músicos tocando alto, platéia conversando mais alto. Ninguém se escuta. No final saem todos infelizes com o resultado, pois tem gente que sai do bar sem pagar – alegando que não foi ao bar pra ouvir música, e sim pra comer ou beber – e o músico vai embora sem ouvir nem um aplauso, porque teve que impor sua música aos ouvidos dos clientes, sem conseguir estabelecer empatia nem com o garçom.

Sou contra a música ao vivo? Negativo. O que precisa mudar urgentemente é o formato desse tipo de apresentação. Afinal, todos os músicos têm o objetivo de vender sua música e receber reconhecimento, assim como os bares querem agradar seus clientes e oferecer novidades. O que falta é arriscar novos modelos. Infelizmente, o público ainda suporta as apresentações “meia-boca”, por isso os donos de supermercados, shoppings, padarias e bares não investem em outros tipos de apresentação musical mais séria em seus estabelecimentos. E nem os músicos mudam sua postura. Tudo segue meio “acochambrado”, limitado a esse paradoxo do “eu finjo que toco e vocês fingem que escutam”, banalizando a arte, desrespeitando o público, ignorando a música.

* publicado no dia 24/6, na coluna ETC&Jazz do caderno de cultura Moitará, da Folha de São Carlos.

2 comentários:

  1. Concordo com você.É um paradoxo a música causando a surdez.

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  2. Você tem razão, isso me perturba também. Sem contar o dilema de não saber se aplaudo ou não a cada intervalo entre as músicas, principalmente se não estou prestando muita atenção ao músico.

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