21 maio 2010

Música e precariedade













Há algumas semanas atrás, um bar de São Carlos cancelou o show de uma banda da cidade poucos dias antes da data combinada para os músicos se apresentarem no local. Como foi desmarcado em cima da hora, a banda não teve a chance de marcar um novo show no mesmo dia em algum outro lugar. Ficaram sem tocar, sem a chance de mostrar o trabalho para os fãs, sem dinheiro no bolso.

O respeito a agenda é um direito que nem se cogita discutir em determinadas profissões. Se alguém cancela uma consulta médica na última hora, pelo motivo que for, tem que pagar a consulta. Na música, esse parece ser um direito não reconhecido. Tanto é que o episódio deu origem a uma troca de e-mails fervorosa entre vários músicos e profissionais da arte da cidade comentando o caso. “Não é a primeira vez que isso acontece”, “não é o único bar onde isso acontece”, “os músicos sempre perdem quando dependem de lugares pra tocar”, disseram muitos.

Há décadas que a atuação dos músicos em casas noturnas, bares e até mesmo festas particulares vem sendo cada vez mais marcada pela precarização das relações de trabalho. Os supostos contratantes dos serviços musicais parecem ter perdido a noção de que têm certos deveres como patrões.

Deveres básicos, como a simples garantia das condições materiais para a realização do show: tomadas elétricas devidamente posicionadas (vejam só, nem isso às vezes o músico encontra), equipamento de som funcionando, fornecimento de água e alimentação se necessário; compromisso com a realização da apresentação agendada e o cumprimento das condições de pagamento combinadas (se for couvert artístico, que o valor seja revertido integralmente aos músicos; se for cachê com base na entrada, que sejam transparentes na hora de fazer o “racha” da portaria).

Essa precariedade não é novidade no show business brasileiro. No livro “A Moderna Tradição Brasileira”, o sociólogo Renato Ortiz relata como as rádios, as televisões e o próprio mercado cultural tupiniquins se formaram nas décadas de 40 e 50 do século passado com base na improvisação, falta de profissionalismo e oportunismo.

Os artistas, sempre a postos para produzir e criar, conseguiram trabalhar e aprender muito nos novos empreendimentos culturais que surgiam (novidades como a criação de jingles publicitários, atuação em “filmes sem imagens” para rádio (!), adaptação de roteiros de teatro para a então recém-chegada televisão), mas também ficaram sujeitos a negociações salariais incertas, contratações irregulares, demissões sem justa causa. A “modernidade” da então emergente e poderosa burguesia brasileira contrastava com as tradicionais práticas paternalistas na relação patrão-empregado.

Hoje ainda é assim, mas já houve avanços. Nos grandes centros, a grande maioria dos artistas minimizou os efeitos maléficos do predatório mercado de trabalho da cultura com a criação de sindicatos e entidades de classe, que tentaram preservar os direitos mínimos dos trabalhadores, criando uma cultura de respeito ao artista. Tabelas de preço mínimo para determinados serviços, definição das atribuições de contratantes e contratados, clareza nas condições de pagamento, respeito a condições de trabalho, com um mínimo de segurança jurídica.

É lógico que isso não criou uma classe extremamente sindicalizada ou unida – aliás, muitos artistas nem conhecem seus respectivos sindicatos representantes – mas isso forçou o reconhecimento da existência desses trabalhadores da cultura, com direitos a serem garantidos. Direitos que nem se discutem, como o direito de ter a agenda respeitada, por exemplo.

*publicado na Folha de São Carlos, no dia 20/5, na coluna ETC & Jazz do caderno de cultura Moitará

5 comentários:

  1. É isso aí! Por mais que nademos contra a corrente continuamos escravos da precariedade...

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  2. murilo,

    é uma realidade...triste...mas, fato notável em quase todas as áreas do entretenimento...só quem está calcado em uma produtora, com managers e consultoria jurídica, ainda que dificilmente, pode enfrentar e desviar-se dessas 'precariedades'...

    aliás, no meu entender, os negócios que envolvem o trabalho do artista devem ser assumidos, não por ele, mas pelos profissionais do showbusiness, pra garantia de ambas as partes...não é isso?

    abraçsons

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  3. Com certeza a precariedade é uma realidade que nos persegue... mas o músico que realmente quer superá-la precisa se organizar, e promover a profissionalização de toda a cadeia produtiva da música... não dá mais pra aturar esse tipo de atitude desrespeitosa das pessoas que querem contratar músicos.
    Obrigado pelos comentários gente, por isso fiz o post, por isso mandei pro jornal. Semana que vem tem mais.

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  4. Algumas bandas que toco como o Mama Quilla e o Bafo Quente, recebem a metade do cachê na assinatura do contrato e a outra metade antes de subir no palco.

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  5. Bem colocado Barthem, mas contrato ainda é exceção na regra das relações casa de show/Bandas. Contrato é simplesmente a concretização das intenções do contratante e do contratado, mas muitos não o assinam por medo de ter que honrá-los - tanto as casas de shows como as próprias bandas. Muitas preferem a cervejinha de graça no palco a tocar em condições profissionais.

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