07 maio 2010

Improvisando caminhos


















Um quadro esquemático da evolução do jazz, por Joachim Berendt (1975, "Jazz, do Rag ao 
Rock").
 

Uma definição de jazz é sempre complicada. Alguns preferem enquadrar o jazz num certo período, num certo país, centrado em determinados personagens-chave. Mais precisamente, dizendo que o gênero nasceu nos anos 1890 nas esquinas de New Orleans, se cristalizou no sucesso comercial das big bands dos anos 1930, se complicou nos anos 40 com o bebop e acabou no começo dos anos 70, quando se diluiu (ou se despurificou) com a mistura com o funk, o rock, a música latina e brasileira.

Outros preferem pensá-lo como uma cultura que não pode ser separada dos embates sociais, raciais e históricos norte-americanos – como faz o renomado crítico Stanley Crouch, que considera que a expressividade do jazz é fruto da luta dos negros para encontrar um caminho estético no turbulento e segregado showbizz american, e que os críticos brancos apoiam músicos brancos que não têm o mesmo valor que os negros.

Como música, o jazz absorveu as principais correntes da música popular e da música erudita de diversas culturas e países distintos, dando origem a novos “jazzes”, novas músicas, novas formas de interpretar, compor, ouvir. Mas alguns elementos musicais perduram nesses cruzamentos de estilos e gêneros. A presença do improviso – individual ou coletivo – por exemplo, é uma constante.

Apesar de existirem várias maneiras de improvisar, o jazz apresenta uma “fórmula” bastante comum. Com algumas exceções, os músicos apresentam uma sucessão de melodias que formam um todo coerente, geralmente dividido em partes, uma A e outra B. Em seguida, começam a improvisar sobre esse tema, criando novas melodias, mas seguindo a forma dada pelo tema original (a forma AA-B-A é a mais comum).

Sobre esse fundo sugerido pelo tema, os solistas se orientam e sabem quando a música está numa parte e não em outra. Isso acontece também com outros gêneros musicais, como o choro. Em outros estilos de jazz, é diferente: no free jazz, por exemplo, surgido na década de 60, os temas passaram a ter uma forma livre, não vinham mais acompanhados de harmonias pré-determinadas pelo compositor, ou nem mesmo existiam – como no disco em que o saxofonista Ornette Coleman colocou dois pianos, duas baterias, dois contrabaixos e dois sopros separados em dois grupos e pediu simplesmente que os músicos tocassem, sem nenhum tipo de partitura ou som-guia.

Algo que lembra a música africana e oriental, onde os músicos realizam o acompanhamento rítmico ao mesmo tempo em que cantam variações sobre a melodia principal. Já no flamenco, música de origem espanhola, é diferente: os músicos que acompanham o cantor nunca sabem quando ele vai parar de improvisar sobre um motivo e partir para outro – coisa que Miles Davis fez em algumas faixas do clássico disco “Kind of Blue”, de 1959.

No hip hop, o ritmo bem marcado e envolvente serve de base para um cantor improvisar letras em algum momento qualquer da música (o chamado “rap”). No jazz, o estilo “scat singing”, criado por Louis Armstrong e elevado à enésima potência por cantoras como Ella Fitzgerald e Sarah Vaughn, parece dar ao canto uma força semelhante. Na música klezmer, de origem judaica, os instrumentos improvisam coletivamente quase o tempo todo, geralmente sobre um acorde só (o chamado “modo”). O improviso coletivo é outra marca do jazz, principalmente nas primeiras bandas de rua de New Orleans.

Portanto, talvez o sucesso e o destaque que o jazz conseguiu no cenário cultural mundial seja o de, justamente, empregar este elemento presente nas mais diversas culturas musicais – o improviso – como uma força imanente ao gênero, resultado da habilidade individual dos solistas e da capacidade de comunicação em alto nível de ideias musicais entre os músicos e a plateia. Para quem toca, é um desafio; para quem ouve, significa o reforço da presença do elemento humano, que transcende a todo o momento os limites da música e da expressão.

* publicado no jornal A Folha de São Carlos, no caderno de cultura "Moitará", na coluna semanal ETC & Jazz, no dia 6/5.

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