02 abril 2010

Ouvidos de moitará


















Moitará” é o nome escolhido para o caderno de cultura da Folha. É palavra indígena que designa um encontro de diferentes tribos para a realização de trocas. Trocas de bens materiais, mas também de conhecimentos e afetividades. Significa o momento de baixar armas, abrir a guarda, dar guarida a novas possibilidades.

Essa coluna convida os leitores a fazerem ouvidos de moitará. Por que os ouvidos? Porque são portas abertas de nossa mente ao universo dos sons. “Os ouvidos não têm pálpebras”, diria um pesquisador francês. Significa que estamos a todo momento dando entrada grátis a qualquer tipo de som que nos acosse. Isso é bom e ruim.

Permitimo-nos ter aulas em escolas barulhentas, que nos tiram a concentração. Permitimo-nos ter alarmes de carros e casas disparados por horas a fio, nos embalando a insônia. Permitimo-nos andar em ruas com lojas que gritam as ofertas como uma bofetada ao pé da orelha. Permitimo-nos deixar a TV ligada em casa a todo o momento, para que o zum-zum nos dê a impressão de que não estamos sós. Até mesmo nos bares, local propício à sociabilidade, permitimo-nos música de fundo atrapalhando o bom andamento da conversa, que ficou entrecortada pelos “hã, não estou ouvindo”, “fale mais alto”.

Não, não quero o silêncio total e absoluto – porque isso seria a morte, a ausência total de sons –, mas parece que nos acostumamos com o barulho. Por outro lado, quando tentamos nos proteger desse inferno sonoro, fechamo-nos a novas possibilidades. Usamos o iPod como escudo protetor no trajeto do ônibus, colocando nossos ouvidos sempre à disposição dos nossos artistas favoritos. Mantemos o rádio no mesmo dial, na estação que só toca a mesma música de ontem, que é a nova de hoje que será igual a de amanhã.

Os sons que nos rodeiam se tornaram opressores. Desse modo, acabamos inevitavelmente fechando os ouvidos com as “pálpebras” do preconceito, da ignorância, da soberba. “Só escuto o que gosto”. “Só escuto música boa”, argumentarão. Esquecem-se de estão escutando, na verdade, sempre a mesma coisa. Sempre a si mesmos. Sozinhos.

Ouvidos de moitará. Por um mundo mais suportável, mais sensível, onde os sons possam nos surpreender, e não nos escravizar.

*publicado no caderno Moitará, do jornal A Folha de São Carlos, em 01/04/2010


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Agradeço a sua participação. Comente livremente. Comentários mal-educados e sem fundamento serão excluídos.