18 abril 2010

CATcerto, ou o retorno da orquestra

Esses caras malucos por gatos sempre postam videos de seus bichinhos fazendo arte. A gata Nora faz sucesso há alguns anos na web por seu vídeo no Youtube, onde toca piano (mal e porcamente, diga-se de passagem).

O compositor e maestro lituano Mindaugas Piečaitis criou em 2009 um concerto para orquestra de câmara no qual a tal gata pianista é a solista. A singela peça, chamada "Catcerto", dura cerca de cinco minutos e lembra composições de Stravinsky, de uma beleza poética, delicada e de sonoridade exótica.



A peça estreou com sucesso no ano passado e foi notícia em redes internacionais de televisão - BBC de Londres e First Baltic Channel, da Rússia. E logicamente é um vídeo muito popular no Youtube. E é esse justamente o aspecto que nos faz pensar: orquestras sendo sucesso?

Talvez na Europa ainda haja um certo fulgor, uma certa mobilização de ânimos em conversas, ao se falar em certas orquestras, maestros ou músicos eruditos: A Filarmônica de Berlim, o inglês maestro-revelação dos anos 90, Simon Rattlle, ou a violonista-prodígio alemã dos anos 80 Anne-Sophie Mutter. Provavelmente fora desse contexto - como no Brasil -, falar em orquestra é o mesmo que falar em museu ou conversar sobre latim - assuntos jurássicos.

Para que uma orquestra (e sua música) voltasse a ser o assunto do dia, o maestro teve uma idéia genial - um novo solista "fenômeno", uma nova celebridade, uma nova diva. E compôs para ela uma música especial, perfeita para destacar seus dotes artísticos e sensibilidade interpretativa fora do comum para a espécie: um gato. Um gato concertista.

Sim, um gato nos fez novamente ouvir as possibilidades sonoras de uma orquestra, nos causando impacto emocional com sua interpretação elegante, melodia cristalina e postura de total entrega à música, deitando-se sobre o teclado nos momentos mais pungentes da canção, embalados sobre os fluxos telúricos das cordas e sopros. Nos trechos de maior tensão, notas repetidamente tocadas sobre acordes dominantes, como se o pianista sentisse que é a hora certa de aumentar a dose de suspense e intensidade das dissonâncias propostas pelo compositor.

Um gênio. Um virtuose, nos dando um show de poesia e lirismo, nos trazendo de volta o sentimento perdido (ou roubado) de satisfação ao ouvir o espírito humano a interagir, modificar, transcender, transparecer através de melodias, harmonias, instrumentação. Satisfação ao se sentir participante da linguagem musical.

Quando a música de orquestra parou de nos encantar? Quando perdemos a vontade de tentar ouvir o que se passa naquele palco cheio de músicos e um doido balançando os braços na frente? As respostas fáceis logo aparecem, e sempre repetidas: televisão demais, trabalho demais, escola de menos, imposição do lixo pela mídia, música erudita cada vez mais hermética e chata, etc.

Todos esses motivos são, na verdade, sintomas de um único mal: a diluição do conceito de escuta desde o século XIX até os dias de hoje. A escuta é bombardeada constantemente por uma série de sons oriundos do sistema de coisas que inventamos para nos sustentar como seres humanos: fábricas, carros, sirenes, tiros, bombas, zumbidos, chiados, dessensibilizando o ouvido para os silêncios de outros contextos. Na escola, o professor grita para atingir os alunos. Em casa, gritamos para superar o barulho da TV. Na fila do banco, aprendemos a direcionar nossos ouvidos para o som da campainha que indica que temos a próxima senha. Nos restaurantes, a mesma prática defuntória, de aguardar mansamente o apito enquanto nosso prato ainda não ficou pronto, e qualquer tentativa de apreciar uma conversa atrapalha a iminente hora de encher a barriga.

Dezenas de outras situações assim nos mostram, inegavelmente, que nossos ouvidos se tornaram, assim como pinças, chaves de fenda, alicates, meras ferramentas de sobrevivência. Meros apetrechos que, ainda por cima, não estão a nossa disposição, mas sim prontos a responder a estímulos mecânicos produzidos por um sistema, uma sociedade, uma complexidade. Ouvidos assim não sabem mais a diferença entre o som de um oboé e de uma chaminé de fábrica. Ouvidos assim não sentem necessidade de orquestras, pois se contentam em reconhecer o toque do celular, a buzina apressada, a campainha burocrática da fila do açougue...

2 comentários:

  1. Grande Murilo!

    Que quadro pessimista meu amigo! O pior é que você está certo, pelo menos no que diz respeito à maioria.
    Seu texto me remete ao conceito de uma banda dos anos 80 que afirmava que a humanidade está em processo de "involução", o DEVO.
    Por outro lado, fazendo um estudo antropológico/histórico, talvez percebamos que isto não é uma novidade. A maioria nunca soube apreciar arte (em qualquer época!), a diferença é que o capitalismo vive em função da maioria e por isso a coloca em evidência pois precisa alimentá-la, o aperfeiçoamento da massa não é interessante, dá muito trabalho e gasto. Vejo com bons olhos a política do Lula de trazer de volta para as escolas o ensino da música, pode ser que nas gerações futuras a coisa melhore...
    Mas a coisa não é tão feia, estou a pouco tempo na "blogosfera" e me surpreendi por encontrar uma grande quantidade de apreciadores de música de concerto/orquestra/erudita. Olhando blogs especializados, reparei uma quantidade imensa de downloads de discos do estilo e um número elevado de visitas mesmo nos blogs mais simples. Há uma espécie de "gueto" firme e forte de admiradores do gênero!


    Abç!

    ResponderExcluir
  2. Agradeço o comentário Rodrigo. Com certeza sou um pouco cético em relação a apreciação musical sim.
    Os guetos artísticos certamente existirão sempre. O que é preocupante é que, se antes eram formados por minorias emergentes em um cenário político e cultural em transformação, hoje estão sendo criados guetos de sensibilidade num cenário que, devido a sua máxima rapidez e extrema mutabilidade, parece estar estagnado. Os guetos da música de vanguarda, da música de invenção, da música étnica, e de outras manifestações artísticas chamadas "novas", estão sendo substituídos por outros guetos - jazz, música de câmara, orquestras - de músicas que parecem ter ficado velhas, chatas, desinteressantes ao ouvido contemporâneo. É essa sensibilidade atrofiada que chama a atenção.
    No mais, vamos resistindo a isso com nossos blogs, podcasts, downloads, e sei lá até onde isso irá nos levar.

    ResponderExcluir

Agradeço a sua participação. Comente livremente. Comentários mal-educados e sem fundamento serão excluídos.