16 abril 2010

Memórias de um pianista melômano


















Eu busco incessantemente saber porque gosto de jazz. É algo inusitado, pois uns 90% dos meus amigos não-músicos em torno dos trinta anos apenas conhecem "de longe" o estilo, ou o toleram, ou não dão a mínima. Não consigo me lembrar um motivo específico que me tenha tornado um amante de uma música tão peculiar.

Mas persigo as memórias como aquele personagem do romance "A misteriosa chama da rainha Loana", de Umberto Eco. O homem tem uma amnésia grave e se esquece de quem é. Ele vê fotos antigas, ouve discos, lê livros, mas não se recorda de como se relacionava com aqueles objetos. Imerso em um mar de informações desconexas, só resta ao desmemoriado ir à casa onde passou a infância e buscar rastros de sua personalidade, de sua formação, de seu lugar no mundo.


Que eu me lembre, a música entrou na minha vida pelo toca-discos do meu pai, que tinhas umas bolachonas do Roberto Carlos (lembro de uma capa em que ele tinha uma pena em cima da orelha... ou isso acontecia em todas as capas?!), outras da Beth Carvalho, da Clara Nunes e umas trilhas sonoras de novelas. A música instrumental vinhas pelos vinis de orquestras como Românticos de Cuba e cassetes de Billy Vaughn.

Arranjos majestosos, alguns melosos, outros elegantes de tão simples e funcionais. Eu lembro de adorar as dinâmicas, cordas se revezando com o piano, solos de trumpete. Na adolescência vieram os CDs de Ray Conniff, que fui comprando às baciadas. Me apaixonei pelos suingados temas da Broadway, pelos boleros universais, pelos classicões de Tchaikovsky arranjados à moda "that 70's show"... ah, as melodias, que paixão. Eu era um melômano.

Adorava Richard Clayderman. Quem não lembra de “Ballade pour Adeline”? Até hoje me pedem pra tocar essa música em casamentos e restaurantes (a melomania é um mal da humanidade). Em seguida veio o Kenny G, com seu sax soprano de som lavado, mas que já tinha um pé no terreno “perigoso” do improviso. Apareciam pra mim, pela primeira vez, os solos de bateria, de percussão, de baixo. Eu estava encantado com todas aquelas possibilidades de exploração da linguagem musical.

Enquanto isso, aos doze anos já participava de rodinhas de violão com meu pai e amigos. Eu já sentia o prazer de fazer a música em grupo só de pegar uma caixinha de fósforos pra acompanhar. Minhas primeiras jam sessions.

Lembro da noite em que minha performance no tique-tique da caixinha foi tão boa que me deixaram tocar um par de bongôs desafinados no lugar de um dos bêbados que esfacelava o andamento. Fiquei com a mão inchada de tanto estapear os danados (os bongôs, não os bêbados). Os elogios no fim da noite me arrebataram. Até esqueci a dor nos dedos. Acho que até hoje esqueço. E só lembro de que fui me construindo na música enquanto ouvia e tocava.

*publicado na coluna ETC & Jazz do jornal A Folha de São Carlos, no caderno "Moitará", em 16/04.

3 comentários:

  1. murilo,

    blog piramidal...chego aqui através do 'sítio virtual', aliás um 'latifúndio', do amigo jazzófilo, érico cordeiro...jazzmaisbossa

    naveguei em postagens antigas e curti bastante o que li e, principalmente, do que ouvi...rs

    oportunamente, visitarei outros sites por ti indicados, ok?

    amplexossonoros

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  2. Valeu pituco, obrigado pela visita. A lista de indicações é automaticamente modificada toda a vez que os sites se atualizam, então está sempre cheia de novidades. Abraço

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  3. Murilo, escrevi recentemente um artigo que trata desse tema: gostos musicais e formas de se apreciar música, chama-se "Você Realmente Gosta de Música?" - se quiser dar uma lida e participar do debate que o tema gerou, taí o link:http://rodmanog.blogspot.com/2010/03/voce-realmente-gosta-de-musica.html

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