16 dezembro 2009

Limites para o jazz ou... cadeia neles! (2)

Vejam aqui a apresentação que quase "deu cadeia na Espanha", no festival de Sigüenza.



Do site FreeJazz

O "criminoso" em questão é o saxofonista americano Larry Ochs, liderando um grupo com Satoko Fujii ao piano, Natsuki Tamura ao trumpete e a dupla de bateristas Scott Amendola e Donald Robinson (talvez esteja aí a base da discórdia, "como pode haver um quinteto de jazz sem contrabaixo e duas baterias, meu deus???").

Escutem bem o trecho. Não é nada assustador. Percebam que há uma espécie de ritmo "shuffle", um certo espírito de rock'n'roll em tempo 6 por 8, o que dá uma bela base rítmica para a improvisação e alta dose de expressividade. As notas ríspidas do saxofone são entrecortadas pelos ataques do trumpete, num diálogo fervoroso, mas inteligível. A pianista acompanha tudo apenas com os olhos, liberando os músicos de qualquer compromisso com a harmonia. É bem contemporâneo, mas é também bem espontâneo e vivo - característica que sempre prevaleceu nas apresentações de jazz desde que o estilo foi "inventado", digamos assim.

É duro dizer quais são as características do jazz, mas é realmente tão difícil defini-lo? Aliás, é realmente necessário? Para o infeliz espectador espanhol que se valeu do chamado da "otoridade" para arbitrar sobre a música que estava ouvindo, saber se aquilo que ele ouvia era jazz ou não era mais que necessário - era a própria essência de sua diversão, de sua satisfação.

Sentir-se satisfeito com o que se escuta é simplesmente atender a uma expectativa do ouvido. É ganhar uma gratificação por ter se disponibilizado a ouvir quietinho aquilo que se queria ouvir. É um ato bem egoísta. Não tem nada de errado nisso, mas é pouco. Dar aos ouvidos o que se quer ouvir é locupletar-se com o já sabido, como ir a um banquete e repetir três vezes o mesmo prato. E são poucos os que se sentem realmente satisfeitos apenas em escutar - seja aquilo música contemporânea, jazz, música clássica, música popular, o que seja. Dar-se ao luxo de uma escuta nova, atenta, contemplativa, inovadora, é um ato de coragem, auto-conhecimento, crescimento, generosidade, humildade, respeito.

Ao deparar com um jazz mais voltado para as tendências vanguardistas da música, o infeliz espanhol entrou em parafuso. Pois um show de jazz acontece no palco, mas acontece também na cabeça de quem escuta. Infelizmente, algumas cabeças ainda acham que jazz trata-se de negros tocando para negros (sim, o crítico americano Stanley Crouch já disse isso, e é respeitadíssimo nos EUA), ou então músicos de smoking branco tocando swing para um salão de baile, ou então um som extremamente rápido e exótico sendo tocado para poucos seres humanos num inferninho esfumaçado em algum porão novairoquino. Estereótipos substituem a realidade com tanta eficiência que a fruição da escuta, da arte, da vida, pode se tornar caso de polícia.

4 comentários:

  1. Había leído algo en la prensa sobre este incidente, pero no había podido escuchar lo que originó el problema. Ahora escuché aquí y entiendo y me identifico con mi compatriota. Es cierto, no es posible definir lo que es jazz, pero creo que puede decirse lo que no lo es y esta "música", para mí -que llevo 50 años de afición- no es jazz. No posee un mínimo de armonía y nada de melodía. Si alguien disfruta escuchando esto, allá él.

    Perdão por não escrever em português, mas era dificil para mim expresar o que queria dizer.

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  2. Quanto ao espanhol, está desculpado. Já quanto à discussão, em si, acho que uma definição de jazz realmente é difícil.
    E o gosto é algo ainda mais complicado de se debater. Em um festival de jazz, compreende-se que várias vertentes musicais do estilo sejam oferecidas ao público, que pode gostar ou não de algumas delas.
    Pode-se gostar muito de algo muito ruim - como pessoas que gostam de cigarros ou charutos - e pode-se odiar coisas consideradas muito boas - como meu ódio por ostras, por exemplo. Mas isso não quer dizer que eu possa chamar a polícia porque me servem ostras num restaurante de frutos do mar.
    Para mim, a atitude do ouvinte de chamar a polícia mostra clara intolerância ao novo, ao inusitado, que faz parte da própria linguagem do jazz, que se renova constantemente com novas influências. E dizer que no referido show não há "o mínimo de harmonia e melodia" é ignorar completamente o que são esses conceitos.

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  3. Agradeço sua resposta e lamento o tom de parte dela. Se você lembra (e se não, pode revisá-lo mais acima), deixo bem claro que o que digo é "para mí", não tento portanto ter a verdade absoluta. Você sim acha que a tem, e por isso me acusa rápida e atrevidamente de ignorar conceitos. Na realidade não me importa o que você possa opinar.

    Qualquer pode tocar o som que mais goste, o que não deve é batizar esse som com o nome de outra coisa. Dizemos na Espanha que "los experimentos se hacen con gaseosa", não sei se entende o sentido, mas o resumo é que num Festival de Jazz de uma pequena cidade ninguém debe aparecer com esse "som" de suposta vanguarda.

    Chamar a polícia entendo que é mais um recurso quase humorístico e de fazer valer direitos do que tentar mandar alguém para cadeia.

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  4. Um conceito nunca é absoluto, dizia Foucault, mas é um constructo que possui lógica e coesão. Se alguém diz que uma música "não tem o mínimo de melodia e harmonia" para justificar uma opinião negativa sobre essa mesma música, está fundamentando uma opinião recorrendo a conceitos que não compreende. Harmonia e melodia são conceitos muito bem fundamentados no campo de conhecimento chamado música. Não são adjetivos, são propriedades dos sons. São fatos científicos. Verdades. Não absolutas, mas que só podem ser negadas com a mesma qualidade conceitual com que foram formuladas, não como algo que não seja "verdadeiro apenas para mim" ou para quem quer que seja.
    Talvez você tenha querido dizer, em sua opinião, que essa música não apresentava uma harmonia tonal, e que não havia frases ou motivos rítmicos que sugerissem uma melodia de caráter romântico ou folclórico, típicos da música popular ou da música erudita pré-século XX.
    No século XX, a tonalidade, o ritmo e as sonoridades utilizadas na música se expandiram até cruzarem fronteiras estéticas, geográficas e culturais. O jazz, que nasceu no século XIX, mas amadureceu no século XX, naturalmente incorporou essas expansões estéticas. O jazz passou a ser nada mais que um "guarda-chuva" onde se abrigam diversas manifestações artísticas, que guardam, cada uma a seu modo, conexões com as raízes centenárias do estilo: improviso (coletivo ou individual) instrumental ou vocal, instrumentação acústica, e sonoridade peculiar marcada por usos de escalas musicais de origem africana junto a modos musicais ocidentais.
    Por isso, hoje, em pleno século XXI, ainda vamos ouvir o clarinete de Benny Goodman em plena forma, soando suas melodias maravilhosamente suaves e brilhantes, cheias de "licks" de blues, que nos encantam sem dúvida, enquanto Anthony Braxton desconstruiu a sonoridade do instrumento em concertos cerebrais e também brilhantemente expressivos, que nos fazem pensar sobre os limites do jazz e da música de câmara improvisada.
    Esse estado de coisas no jazz é emblemático do conceito de um filósofo alemão de que não me lembro o nome agora. Ele falava que, na pós-modernidade atual, coisas de épocas diferentes coexistem no mesmo espaço: a coexistência do não-coetâneo. Portanto, uma música que já tem mais de 100 anos de história - o jazz - ainda hoje apresenta sonoridades que foram criadas há 60, 70 anos atrás, ao mesmo tempo que traz outras referências, como "as supostas" vanguardas. É natural que isso aconteça.
    Assim como é natural que ouvidos acostumados às sonoridades do século XX tenham que conviver com ouvidos mais abertos às novas manifestações do tempo atual, não sendo uma coisa melhor do que outra: apenas necessitam um código de conduta ética para que possam conviver.
    Pagar por um chocolate e receber macarrão é caso de polícia. Pagar por "jazz" (um rótulo que abriga milhares de estéticas) e receber "jazz moderno" não é o que se pode chamar de crime. Por isso, o recurso de chamar a polícia não me parece nada "engraçado", restando apenas como um ato autoritário e antiético, de alguém que não respeita uma manifestação musical outra que não seja igual àquela com quem já se tem familiaridade.
    Detalhe: na sua resposta, você diz que "não me importa o que você possa opinar". Isso me soa como intolerância, ou entendi errado? Pra que toda essa discussão então? Enterremo-nos cada um em nossos próprios bunkers ideológicos e esperemos que vença o melhor. Ou o que fala mais alto. Pois barulho é o que não falta no mundo. Cadê o silêncio das idéias?

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