29 novembro 2009

Caim, o avatar de Saramago



O novo livro de Saramago marca a volta do autor português a um de seus passatempos preferidos - cutucar a religião católica. Após o polêmico romance em que narrava o nascimento, vida e morte de Cristo - "O Evangelho segundo Jesus Cristo", que lhe valeu a excomunhão por parte do Santo Ofício -, "Caim" agora aumenta ainda mais o tom ácido e crítico de suas referências à religião. Talvez o Papa ordene uma nova excomunhão, ou então lhe providencie um passaporte para o inferno.

O livro é uma engraçada sátira do Velho Testamento, conjunto de textos da Bíblia que trata dos fatos religiosos ocorridos nos tempos antes do nascimento de Cristo. Lá estão descritas as grandes guerras, pestes, mortes, pragas, desgraças e episódios bizarros e sangrentos que se deram nesta Terra devido ao atrito entre a resolução divina e o comportamento humano. Um prato cheio para o agnóstico Saramago, que acusa todo tempo as injustiças e barbaridades cometidas pelo próprio Criador.

A história tem jeito de farsa teatral, bem construída em torno das andanças de Caim, o primogênito de Adão e Eva, pelos primórdios da humanidade pré-cristã. Humilhado e ofendido por ter sido preterido em favor do irmão, Caim recebe de Deus uma marca na testa que o protege das ações humanas - espécie de mea culpa divina, em compensação por ter testado a fé do assassino. O protagonista segue errático pelo deserto seco e solitário, mas vaga também avançando e retrocedendo no tempo, e acaba por testemunhar fatos como o quase-sacrifício do filho de Abraão, a queda de Sodoma e Gomorra, a construção da Torre de Babel, a matança dos adoradores do bezerro ordenada por Moisés, entre outros episódios bíblicos catastróficos.

Em todos os capítulos o autor questiona a ética e a moral das ações e ordens divinas, que provocam morte e sofrimento. Fica claro que é o próprio Saramago que se traveste de Caim para "descer o sarrafo" na violência e na arrogância de Deus. Com irreverência e um toque de "filosofia-ao-rés-do-chão", bem sofismático, Caim põe a nu a face diabólica de Deus. Mas perde um precioso tempo fazendo isso.

Talvez por isso o livro não iguale o fôlego e a envergadura que teve o "Evangelho", pois fica tempo demais a questionar e tempo de menos a contar uma boa história que desse razão a Caim. Ao passear por muitas passagens narradas no Antigo Testamento, fica a impressão de que o autor apenas sublinhou na Bíblia as partes que lhe interessava criticar, sem explorar com maior sabedoria as possibilidades narrativas que os episódios possuem. Sobra bom humor, mas sente-se a falta da humanidade rústica, da delicadeza bruta, da sinceridade onírica que fizeram do "Evangelho" uma das mais belas histórias que já se contou, incluindo a própria Bíblia.

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