27 novembro 2009

Ran Blake, o pianista da névoa



A cortina se abre. Um velho de 74 anos dedilha notas soltas ao piano, aleatórias, que vão se combinando em acordes difusos, sobrepostos, tensos. Uma nuvem de éter, luar, umidade encobre o palco. De repente, as folhas de outono esvoaçam pelo teatro, um frio vento londrino corta o corredor central, a lua espreita entre os vapores que evolam das coxias mal-iluminadas pelas lâmpadas de mercúrio.

Não estamos mais em uma sala de concerto, estamos numa esquina de um filme em preto-e-branco. Alguém se aproxima... uma sirene soa ao longe entrecortada por passos apressados. A sombra se move cambaleante, delineada nos muros sujos dos becos iluminados pelos neons de inferninhos esfumaçados.

O velho de 74 anos que recria sonoramente essas cenas é o pianista norte-americano Ran Blake, um mestre que dedicou sua vida ao jazz, dando um toque de sofisticação e originalidade a suas interpretações de standards e composições para cinema. Tudo nas mãos de Blake ganha contornos etéreos, vagos, sempre soando como trilha sonora de filme noir. Seu estilo ficou mundialmente conhecido ao lançar, em 1962, o histórico álbum The Newest Sound Around, em que recriava standars com sua abordagem inovadora juntamente com a cantora Jeane Lee.

Neste concerto ele faz uma espécie de resumo de suas principais interpretações. Foi gravado ao vivo na rádio NPR, em Boston, em um estúdio em que artista e platéia estavam totalmente imersos no escuro. O apresentador até faz uma piada sobre a situação, a que Blake mordazmente responde: "Há claridade demais no mundo". Isso diz tudo sobre seu som.

Blake é também conhecido por seu método incomum de ensino musical no New England Conservatory, em Boston (US), onde é professor na disciplina de Improvisação Contemporânea. Blake prega que a música é tradicionalmente ensinada a partir do sentido errado - a visão, dirigida a leitura de partiturasm, em vez da audição, que deve ser o ponto de partida para o aluno desenvolver sua relação com a música. Seus alunos mais promissores foram o clarinetista Don Byron e os pianistas John Medeski e Matthew Shipp.

O programa traz várias canções usadas em filmes do diretor francês Claude Chabrol, o preferido de Blake, e um dos nomes mais emblemáticos do cinema noir. Também há standards e canções tradicionais. Em todo o concerto, o clima é de absoluta concentração e êxtase, pois a singeleza das melodias, entrecortadas por abruptos acordes graves, deixa o ouvinte abismado pela riqueza de sonoridades possíveis do piano. Seja free jazz, third stream, música de câmara, música improvisada, rótulos como esse não contemplam com exatidão a música exótica e profunda deste quase desconhecido gênio.

Curtam o concerto.


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