02 setembro 2009

Voz no jazz



O instrumento mais difícil de tocar é a voz. Todos os outros se tocam com as mãos, dedos, pés ou boca. A voz se toca com o corpo. Ouvido, cérebro, garganta, língua, dentes, músculos, pulmões, diafragma, quadris, joelhos e pés interagem para fazer com que todo o corpo se torne um grande instrumento que faz vibrar o ar por meio das cordas vocais e produzir um som que é único, individual. Um som que, literalmente, respira. Vive.

Todos temos voz. Todos nós cantamos - quando falamos, entoamos notas rapidamente. A diferença é que, na canção, congela-se a duração das sílabas para que possamos saborear as palavras embaladas pela melodia, sentindo cada nota e cada verso como uma poesia sonora. Para se conseguir esse efeito, é necessário técnica, estudo e talento.

No jazz, o cantor tem ainda a difícil missão de fazer com que seu instrumento seja capaz de improvisar. Ir além da melodia, dando novas direções para os sons. Ir além da letra, criando versos, tirando ou colocando palavras, reorganizando a mensagem para alcançar sentimentos que se produzem naquele momento único que é a hora do show. Ser capaz de entender tão bem a harmonia para que possa abandoná-la, sem medo de andar na corda bamba que separa o improviso da embromação, desafiando a desafinação.

Ella Fitzgerald elevou ao mais alto nível a arte de improvisar com a voz no jazz. Poucas a alcançaram. Talvez apenas Sarah Vaughn ou Billie Holliday estejam no mesmo patamar, por terem o poder de emanar sentimentos ímpares com seus timbres e interpretações únicos. Todas acrescentaram glamour, virtuosismo, dramaticidade ou tudo isso junto às suas melodias preferidas. E todas são herdeiras do estilo divertido e suingante das intervenções de Louis Armstrong em suas gravações, pois ele literalmente inventou o estilo scat de improvisar, com aqueles bah-bah-dah-boo-dap-doo (a lenda diz que ele teria derrubado a letra no chão do estúdio e teria começado a fazer esses sons para encher linguiça...).

A verdade é que Louis criou um ethos para o canto no jazz. Intervir na letra, na melodia, na duração, não era mais um tabu, e sim, a regra. Há cantores que nas últimas décadas levaram essas regras às últimas conseqüências, como Al Jarreau, Bobby McFerrin, Rachelle Ferrell, Carmem McRae, Shirley Horn, Kevin Mahogany, Madeleine Peiroux, Dee Dee Bridgewater, Diane Reeves, Kurt Elling, Tony Bennett, Frank Sinatra (apesar de pouco improvisador, tinha o dom de tornar elegante qualquer frase musical), Chet Baker (com sua voz pequena e perdidamente doce) e muitos outros. Corajosos inovadores, que levam a sério o papel do intérprete e ousam.

Gosto dos cantores que inovam, inventam. É cada vez mais raro hoje em dia acompanhar um cantor que tenha pelo menos coragem de deslocar as frases, criando novas divisões, como fazia João Gilberto. Me sinto sortudo por conseguir trabalhar com a cantora Bia Mestrinér, que mostra intimidade com as canções que escolhe pra cantar e, por isso, consegue brincar com melodias e divisões com elegância.



(com Zé Pereira no baixo e Odemir de Carvalho na bateria. Gravado no Restaurante Os Ciprestes, em Ribeirão Preto, onde Bia se apresenta todas as sextas-feiras)

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