07 abril 2009

Memórias musicais




Eu busco incessantemente saber porque gosto de jazz. É algo inusitado, pois uns 90% dos meus amigos não-músicos em torno dos trinta anos apenas conhecem "de longe" o estilo, ou o toleram, ou não dão a mínima. Não consigo me lembrar um motivo específico que me tenha tornado um amante de uma música tão peculiar.

Umberto Eco, em "A misteriosa chama da rainha Loana", cria um personagem que perde a memória após um acidente e precisa reconstruir sua história pessoal por meio de diários, livros, discos, fotos, revistas e anúncios antigos, guardados na casa de seus pais no interior da Itália. Tudo o que ele guarda no cérebro são informações objetivas como datas, nomes, trechos de poesias, mapas, mas sem conseguir relacioná-los a nenhum acontecimento afetivo - ele sabe, por exemplo, o nome de sua filha, mas não sabe porque lhe deu um apelido. Lembra do rosto de sua esposa, mas não sabe se fazia sexo com ela. Seus netos o chamam de "vovozinho", e ele só se sente aparentado porque sabe que são filhos de sua filha.

Na busca por informações do passado, velhas fotos de revista apenas provocam mais perguntas: reconhece a imagem de Flash Gordon em velhos gibis de aventuras, mas não lembra porque colecionava as revistas. Será que o herói o encantava porque tinha uma namorada bonita, ou porque empunhava um revólver e era violento? O que sentiu quando o olhar de Bette Davis no cartaz de "A malvada" o olhou fixamente envolto na lânguida fumaça de sua piteira? Tesão? Medo? Os signos diziam (e dizem) tudo, armadilhas que escondem inúmeros significados, mas qual significado fazia realmente sentido para o desconectado personagem?

Imerso em um mar de informações desconexas, só resta ao desmemoriado perseguir a origem de suas lembranças, indo buscar na casa onde passou a infância rastros de sua personalidade, de sua formação, de seu lugar no mundo.

Que eu me lembre, a música entrou na minha vida via toca-discos de vinil do meu pai, que tinhas umas bolachas do Roberto Carlos (lembro de uma capa em que ele tinha uma pena em cima da orelha... ou isso acontecia em todas as capas?!...), outras da Beth Carvalho, da Clara Nunes, umas trilhas sonoras de novelas, e um monte de discos da Turma do Balão Mágico. Quando tinha 7 anos, o toca-discos quebrou e fiquei um tempão sem me interessar por música.

Quando consertaram a radiola, eu já tinha uns 9 anos e começava a ouvir música instrumental, que vinha com os vinis de orquestras como Românticos de Cuba e cassetes de Billy Vaughn. Arranjos majestosos, alguns melosos, outros elegantes de tão simples e funcionais. Eu lembro de adorar as dinâmicas, cordas se revezando com o piano, breaks de bongos e congas, solos de trumpete. Depois vieram os discos de Ray Conniff, que fui comprando às baciadas. Me apaixonei pelos suingados temas da Broadway, pelos boleros universais, pelos classicões de Tchaikovsky arranjados à moda "that 70's show"... ah, as melodias, que paixão. Eu era um melômano.

Richard Clayderman era então um ícone do piano, aquele grande instrumento branco tendo as escalas escandidas em todas as oitavas nos arranjos do produtor e compositor Paul de Seneville (quem não lembra de Ballade pour Adeline? Até hoje me pedem pra tocar essa música nos restaurantes da vida...). Então caiu na minha mão o CD "Live", do Kenny G. Pronto, estava entrando no terreno perigoso do improviso. Entre lamuriosos solos de sax (os de soprano hoje me soam terríveis...), apareciam pra mim pela primeira vez os chorus de solo de bateria, de percussão, de baixo (com os slaps intermináveis de Nathan East), de teclado, e eu encantado com a possibilidade de fazer música daquele jeito. Como eles conseguiam?

Pelos discos, a música ia me mostrando um universo de possibilidades. Enquanto isso, aos doze já participava de rodinhas de violão com meu pai e amigos - o pandeiro de Ditinho dava o ritmo para os violonistas que se revezavam, e eu e já sentia o prazer de fazer a música em grupo só de pegar uma caixinha de fósforos pra acompanhar. Minhas primeiras jam sessions.

Lembro da noite em que minha performance no tique-tique-tique da caixinha foi tão boa que me deixaram tocar um par de bongôs desafinados no lugar de um dos bêbados que esfacelava o andamento. Fiquei com a mão inchada de tanto estapear os danados. Naquele momento não me lembro se queria ser Paulinho da Costa ou apenas tocar tão bem quanto Ditinho, mas os elogios no fim da noite me arrebataram. Até esqueci a dor nos dedos. Acho que até hoje esqueço. E só lembro de que fui me construindo na música enquanto ouvia e tocava.


4 comentários:

  1. Classe. Só falta explicar como o metal entrou na sua vida, ó ex-baterista do Crow...

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  2. Thom, acho que a omissão dos meus anos "metaleiros" nas minhas memórias musicais é quase justificada: metal era uma música que eu não escutava. O rock realmente não fazia parte da coleção de discos do meu pai e, a não ser por um CD que comprei aos 14 anos ("The Greatest Rock´n´Roll Stars", apresentando Chuck Berry, Bill Halley e Jerry Lee Lewis), realmente não fazia parte dos meus interesses músico-consumistas.
    A não ser por uma ou outra música do Sepultura e do Nirvana, que bombava nos anos 90 e que eu ouvia por osmose nos primórdios da MTV brasileira, acabei entrando numa banda de rock como baterista por pura diversão juvenil, e não por admirar o estilo. E por ter tendências "baterísticas" que os outros amigos não tinham (eles gostavam mais de guitarra...), assumi o papel. Quando a banda ficou séria e já se falava em fazer shows, preferi estudar teclado a frequentar os ensaios do grupo. Nessa época, em 94, eu confesso que fiquei mais triste com a morte do Tom Jobim em 1994 do que com o fato de não participar mais de um grupo de rock...

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  3. Meu amigo! Texto foda!
    Saudade de falar coisas sérias e rídiculas com vc!

    Bjs

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  4. Murilo Heavy Metal!!!

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