25 março 2009

Os sons que eles escolheram



No jazz, a escuta é essencial. Escutar é a base do criar, abrangendo as três pontas do triângulo da fruição estética: o ouvinte/espectador, que recria os sons levado pela sensibilidade dos intérpretes; por sua vez, os intérpretes recriam as sonoridades dos compositores das canções que estão tocando; por fim, os compositores elaboram suas obras com base em referências sonoras anteriores. Escutando, compondo e criando ao mesmo tempo. Público, músico e criador interagem a cada momento. Não foi à toa que o compositor e pesquisador francês Pierre Schaeffer dizia que a música começa nos ouvidos de quem escuta.
Ao ler a Downbeat de março, tive a certeza de que todos os criadores do jazz pararam, em algum momento de suas vidas, para exercitar a escuta. A matéria de capa traz vários artistas do gênero falando sobre seus álbuns favoritos pertencentes ao catálago do legendário selo Blue Note. Legal pra conhecer os gostos e influências dos caras - o que ouviram, como traduziram o que ouviram, e como aplicaram o que compreenderam em suas obras.
A foto de capa traz o saxofonista Joe Lovano segurando o vinil "Free For All", do baterista Art Blakey e seus "mensageiros do jazz". Eu não conhecia o disco. Corri atrás (santo Google) e vi que já tinha ouvido pelo menos a faixa-título, que é uma correria só, hard-bop da pesada, tem que ouvir. E dá até pra entender de onde Joe Lovano tirou a expansividade de seu som...
Além de Blakey, citado como favorito também pelo trumpetista Randy Brecker, três artistas parecem ter dominado as preferências gerais: discos de Wayne Shorter (citados pelos saxofonistas Branford Marsalis, Greg Osby e Chris Potter, pelo trumpetista Nicholas Payton e pelo vocalista Kurt Elling), Herbie Hancock (referidos pelos trumpetistas Sean Jones e Terence Blanchard e pelos pianistas Geri Allen, Kenny Werner e Uri Caine) e Horace Silver (comentados pelo pianista Bill Charlap, trumpetista Dave Douglas e cantora Dee Dee Bridgewater).
Não é de se espantar que tantos bons músicos tenham bebido das mesmas fontes, sensíveis às novas formas de compor e improvisar apresentadas pelas inesquecíveis bolachas da Blue Note, gravadora em sua plena forma nos férteis anos 60 - pré-fusion, pós-bebop, quasi-free. Esses discos são o puro reflexo de uma época revolucionária, em que os artistas procuravam novos caminhos, novas fusões, novas cores - e Herbie, Shorter e Silver eram realmente promissores nessa alquimia de misturas sonoras.
Hoje, não é tão importante ter as gravações - seja em vinil, CD, ou DVD - para se ouvir músicas diferentes. A internet se tornou um grande "distribuidor" de informação musical, disponível para quem quiser, muitas vezes de graça. Fuçando bem, se acha desde raridades do choro brasileiro da década de 20, passando pelas canções de rituais religiosos africanos, até a música eletroacústica avant-garde composta antes-de-ontem por algum novo Stockhausen digital.
Não é mais necessário mais buscar a música - esta é que nos acessa, nos assedia, "coloca nossos ouvidos para trabalhar a seu favor" (na teoria de Giuliano Obici) em iPods, podcasts, rádios digitais, sons prêt-a-porter compactados na nova panacéia digital chamada mp3. Portanto, mudam as tecnologias, mas a questão permanece a mesma: como permanecer sensível às músicas que nos rodeiam, tendo uma enorme quantidade de sons disponíveis?
O que esses artistas da Downbeat nos ensinam, ao comentar seus bolachões, não é a ter amor pelos discos - ou pela coleção de mp3 baixados da internet, ou pelo novo iPod com milhares de gigabytes de capacidade - e sim a ter cuidado com o que se escuta. Em uma época onde milhares de vinis da então vigorosíssima indústria musical invadiam as prateleiras com "o mais novo sucesso das paradas" - traduzindo, centenas de cópias mal-acabadas de grupos musicais de sucesso -, eles souberam escolher "poucas e boas" gravações, de onde extraíram a matéria-prima para criar seus universos musicais, seus próprios discos, seus próprios oásis de sons frescos em um deserto de mau-gosto e enfadonhas repetições barulhentas das FMs comerciais.

Um comentário:

  1. Parabéns Murilo. Como sempre, um arraso!
    Abraços sonoros,
    Flávia Bespalhok

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