06 março 2012

O caso dos celulares sem fone de ouvido*



 















Estimo que já fiz o trajeto Araraquara-Londrina de ônibus cerca de 150 vezes em 10 anos. Posso dizer tranquilamente que, nesse período, observei uma modificação nos tipos de som que escutamos dentro do ônibus.

Antes havia mais barulho sendo produzido por pessoas do que por coisas. Conversas de madrugada, malas sendo acomodadas, pacotes abrindo, o terrível amassamento dos sacos de salgadinho, crianças gritando – todos ruídos incômodos, mas que interrompiam o silêncio por pouco tempo, até que alguém pedisse para baixar a conversa, que controlasse a criança, etc. Mas percebo que hoje há nos ônibus mais sons eletrônicos do que de gente, devido aos notebooks, videogames portáteis, mp3 players e devido a eles, os famigerados celulares sem fone de ouvido.

O celular mudou a forma das pessoas se comunicarem. É um aparelho que propicia um elo individual, atomizado, ultrapessoal do indivíduo com o resto do mundo. E essa extrema personalização parece ter mudado também a percepção dos seus usuários em relação às outras pessoas que estão em volta. Se antes o toque do celular só atrapalhava concerto de música clássica, hoje são suas músicas em formato mp3 que causam estrago.

Aposto que, com a exceção dos boomboxes (aqueles sound-systems portáteis que algumas turmas usavam no final dos anos 80 para levar suas músicas para a rua), você nunca viu ninguém ouvindo rádio em público sem fone do ouvido (desconte os radinhos de pilha em dias de futebol). Pois é, o celular que toca músicas é o novo boombox. O povo está à vontade para usufruir de suas canções favoritas e dividi-las com todos em volta, sem se preocupar o gosto musical alheio. E mesmo quando o repertório é de nosso agrado, quem quer ouvir um Beethoven, um samba de Paulinho da Viola ou um solo frenético de John Coltrane às duas da manhã num elevador? Ou num avião? Ou ônibus?

Cada estilo musical tem seu público específico, mas já fiz viagens inteiras sendo “platéia forçada” de música sertaneja, pagode, música eletrônica, música evangélica, e outras mais, via celular. O triste é que poucas vezes vi outras pessoas reclamando disso. Se uma criança chora, imediatamente há pessoas fazendo queixas. Se alguém ronca, sempre há alguém para dar cotoveladas. Mas, por incrível que pareça, são poucos os que se incomodam com os terríveis agudos da música dos celulares. O que está acontecendo com os ouvidos dessas pessoas?

Poderíamos arriscar várias explicações para esse fenômeno. Poderíamos brigar por nosso direito ao silêncio no ônibus, mas quase todas as tentativas que levei a cabo não surtiram efeito (aliás, nunca conte com o motorista como um árbitro justo nestas questões de convivência civil). Prefiro aqui dar uma dica valiosa. Contra a invasão dos celulares sem fone de ouvido, me armei com um aparelho eletrônico muito eficaz: um celular, com fone de ouvido. Afinal, meu gosto musical não é melhor do que o de ninguém, mas é só meu e eu respeito o ouvido do outro. Mesmo que o outro não respeite o dele próprio.

*Texto publicado na Revista Perfil Araraquara (fev/2012)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Agradeço a sua participação. Comente livremente. Comentários mal-educados e sem fundamento serão excluídos.