31 março 2011

O lugar da arte (1)














Espaço: uma delimitação de área que pode conter algo ou não. Espaços culturais surgiram como alternativas à falta de prédios especializados para a promoção de atividades culturais. Faltavam teatros para a música - também para a dança e para o próprio teatro -, faltavam salas de cinema, faltavam galerias e museus para as artes visuais. O que fazer?

Criaram-se então dezenas de salas, galpões, barracões, porões, mezaninos, sótãos, estações de trem, caixas d´água, túneis, entre outras arquiteturas públicas várias, para se abrigar shows, obras e performances. Com baixo investimento, inteligência e boas intenções, o Poder Público "salvou" as artes de ficar debaixo de chuva, sem platéia, no escuro. Qual a verdadeira política cultural aqui? Gastar pouco e iludir o contribuinte de que as míseras esmolas do orçamento destinadas à cultura estão sendo utilizadas na "democratização" da arte e diversificação dos "equipamentos culturais" do patrimônio da cidade. Investir em educação artística, construção de teatros, auditórios, cinemas - de verdade, não de lona - dignos para uso de toda a população, disso nem se fala.

Os governos passaram a oferecer arte ao público em suas repartições públicas mofadas e prédios sem a mínima adequação. Como um desdobramento desse pensamento, diversos espaços privados também passaram a adaptar suas dependências para as artes. Restaurantes com "foyer", bares com intervenções teatrais, clínicas médicas com galerias, supermercados e até padarias com palcos para músicos. Sob a chancela do marketing cultural ("eu promovo a arte, portanto sou um bom empresário"), uma miríade de artistas novos à disposição, loucos por uma oportunidade de mostrar seus trabalhos, não deixaram faltar pinturas, esculturas, grupos teatrais e músicos de primeira viagem a encher esses espaços.

O empresário esperto passou a ter facilmente a sua disposição uma nova "mais-valia cultural", espécie de diferencial competitivo com verniz de mecenato - a virtuosa boa intenção de acolher e apoiar as artes. Também surgiram pessoas, ligadas às artes de alguma maneira (nem sempre de forma profissional), se oferecendo como "curadores culturais freelancer", que organizam os tais eventos artísticos nesses novos espaços.

Em uma primeira análise, tendemos a ver como positivas essas transformações na forma como se oferece a arte - "democratização" do acesso à cultura. Mas, pensando melhor, será que essa verdadeira "pulverização" da cultura por todos os lugares não parece fazer com que a arte fique igual a qualquer banalidade que nos apareça no cotidiano? Lembram os banners de propaganda piscando na tela do computador enquanto navegamos na internet, os anúncios barulhentos que irrompem na programação televisiva, jingles tocados a máxima velocidade no rádio. Tudo misturado, tudo a mesma coisa (qualquer relação com a tese do desencantamento da arte de Walter Benjamin é mera coincidência...).

À parte obras de arte que são pensadas para se intrometer mesmo no dia a dia e causar algum espanto no incauto cidadão que flana pela cidade no piloto automático, não há mais lugar para apreciação ou fruição estética. Nem mesmo há o prazer do artista na elaboração de suas obras em casos assim. Tudo é entretenimento, apenas. Vá ao dentista e arranque um dente ouvindo um violinista tocando ao vivo. A espera no consultório médico é longa e humilhante, mas você está cercado de agradáveis quadros e esculturas de algum novo grande artista anônimo. Logo cedo tome um café na padaria enquanto piano e gaita tocam um blues como se a noite ainda não houvesse acabado. Um poeta intervém e declama um decassílabo que você já ouviu ontem na entrada do cinema. Faça as compras no supermercado ouvindo algum tecladista desfiar os últimos sucessos sertanejos que você já ouviu por osmose de alguma rádio que tocava em algum alto-falante em frente a alguma loja em alguma rua do centro da cidade.

Não há mais lugar para a arte. Lugar físico e mental para a arte. Como artistas, somos todos malabares desesperados tentando ganhar nosso mirrado cachê em sinais de trânsito. Como respeitável público, estamos todo no circo. E aos artistas que perceberam todo esse estado de coisas - artistas não reconhecidos e marginais, diante de um público atônito e maltrapilho - o poder público oferece a opressão como forma de evitar que a classe artística se aproprie de outros lugares que não aqueles designados pelos caciques da cultura.

Teatro Municipal sendo convertido em salão de baile de formatura? Pode, com alvará e tudo, carimbado e assinado em três vias pelos burocratas das secretarias afins. Porão de prédio sendo utilizado para uma infinidade de eventos culturais - a maioria com lotação esgotada - por coletivos de marginais (ops, de artistas) sem espaços disponíveis para mostrar sua arte? Não, não pode. E o resto da história virá no próximo post...

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