27 dezembro 2010

Dave Brubeck, patrimônio cultural do jazz

A música encontrou um novo jeito de ser tocada quando foi experimentada pelos primeiros jazzistas. Eram negros roucos debatendo suas gargantas em field hollers nos campos de algodão do sul; pianistas ingênuos que trocaram as sisudas polcas e mazurcas pelo sapeca ragtime que invadia os salões de dança; eram  trovadores que entoavam suas canções blues pelas linhas tortas das escalas tristes e versos tragicômicos; cornetistas sátiros que enterravam seus mortos com melodias sentimentais e logo explodiam em síncopes coletivas junto aos clarinetistas e trombonistas de plantão.

Um pequeno conjunto de atitudes, gestos, sensibilidades, em meio a um quadro histórico e cultural efervescente do início do século XX, que marcava a formação da moderna sociedade industrial norteamericana, então em pleno desenvolvimento econômico e começando sua transição de valores racistas e puritanos para valores igualitários e liberais, sem ignorar todos os impactos que as mudanças econômicas e sociais causaram nas artes. Tudo isso foi determinante para fazer germinar uma estética, uma nova expressão artística, que evoluiu em inúmeras outras formas musicais dentro de um novo gênero chamado jazz.

O gênero também foi impulsionado pela própria estrutura social norteamericana, que confere ao indivíduo a plena liberdade de iniciativa - pelo menos em sua Constituição, na famosa emenda do "direito à busca da felicidade" -, reconhecendo e premiando a da presença do "self made man", esse indivíduo mítico que vence por seus próprios méritos, disciplina, dedicação e ousadia. O artista de jazz é sempre um "self made man", em diferentes graus e figurações. Seja o músico estudioso, o gênio incompreendido, seja o excluído, o pobre, o negro, o bêbado, os jazzistas são sempre metáforas de suas próprias superações. São "vencedores" da arte, por realizarem-se ou como criadores, ou improvisadores, produtores, entertainers, estetas, professores, bandleaders, entre outros títulos.  

Nos EUA, o jazz é talvez o patrimônio imaterial - termo que alguns estudiosos da cultura tanto empregam atualmente no Brasil - mais cultuado no país, que proporciona dezenas de prêmios, bolsas de estudos, cursos de formação ou apoio institucional aos grandes músicos que se destacam no gênero, ajudando a desenvolver e a manter viva essa música por meio de suas personalidades criativas.

Esse é o motivo pelo qual o pianista Dave Brubeck (Concord, Califórnia, 1920), que completou 90 anos no último dia 06/12,  recebeu essa homenagem mostrada no vídeo abaixo.





Era aniversário de 89 anos de Brubeck, pianista que compôs alguns dos maiores hits do jazz chamado west coast, fazendo uma fusão da sonoridade blues com ritmos exóticos em compassos compostos - 7/4, 5/4, 6/4, 9/8. O disco "Time Out" (1959) foi um sucesso de público, sendo um dos discos de jazz mais vendidos até hoje, mas a crítica chegou a acusar o disco de "anti-swing" devido ao uso ostensivo de figuras rítmicas inovadoras. 

As obras de Brubeck sobreviveram às críticas e encantam até hoje. No vídeo, músicos do primeiro escalão do jazz contemporâneo interpretam uma espécie de suíte das principais composições que marcaram a carreira do pianista: "Unsquare Dance", "Blue Rondo à la turk" e "Take Five". Brubeck se delicia ao escutar suas peças interpretadas lindamente arranjadas e interpretadas pelas feras Bill Stewart (bateria), John Faddis (trumpete), Bill Charlap (piano), Christian McBride (baixo) e Miguel Zenón (sax tenor). Justo ele, que teve seus arranjos para big band enxovalhados por Schoenberg, que acusou o pianista de "não saber o porquê de cada nota em sua pauta". 

"As tradições são inventadas", segundo o historiador Eric Hobsbawn. Prefiro dizer que as tradições são vivenciadas. Uma tradição pode até ser inventada para servir ou legitimar um sistema ou um modo de vida, mas é preciso lembrar que antes de inventar, o homem vivencia suas tradições, seus sonhos, suas narrativas. O patrimônio imaterial - que pode muito bem servir a tradições inventadas, conveninentes ao status quo - se reinventa quando se materializa em homenagens assim, onde o patrimônio é colocado frente-a-frente com sua história, seu presente e seu futuro.

Time Out - The Dave Brubeck Quartet (1959)

Dave Brubeck – piano; Paul Desmond – alto saxophone; Eugene Wright – double bass; Joe Morello – drums

1. "Blue Rondo à la Turk" (6:44); 2. "Strange Meadow Lark"  (7:22); 3. "Take Five" (5:24); 4. "Three to Get Ready" (5:24); 5. "Kathy's Waltz" (4:48); 6. "Everybody's Jumpin' "(4:23); 7. "Pick Up Sticks" (4:16)

4 comentários:

  1. Essa homenagem que fizeram a Brubeck é simplesmente emocionante. Que legado o desse artista!

    Muito legal esse post.

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  2. Com certeza Edison, recebi o link do post por email de amigos, e logo vi que era um bom motivo pra escrever sobre o jazz e sua permanência até os dias de hoje, sobrevivendo por meio de mutações e fusões, mas prestando tributos aos grandes gênios do estilo. Viva Brubeck. Obrigado pela visita.

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  3. Estou emocionadíssima!! Que lindo! A expressão dele de encanto.......deve ser um momento inimaginável pra ele!!

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  4. Com certeza Rê, ainda mais quando ele vê os próprios filhos tocando... mata o véio! hehehe

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