23 abril 2010

Jazz, uma poética

 









Joe Lovano, Diane Reeves, Cassandra Wilson

Me perguntam de vez em quando que tipo de música eu toco. Hesito um pouco, mas acabo dizendo “jazz”. “E MPB”, acrescento. “E bossa nova também”, digo. “Ah, uns sambas também, e músicas bonitas, com uns improvisos, vai”, arremato. Pra não perder o trabalho, falo que o repertório é de “música de noite”, ou “música de casamento”, “ou música ambiente”. Às vezes arrisco um “toco música instrumental”, mas aí complica.

O nome “jazz” assusta. Traz um estigma. Tem uma história por trás. Tem um lance de blues, de negro, de inferninho. Tem uma alma atormentada, de músico indo de bar em bar pra tocar notas difíceis e estridentes. Rola um negócio de algazarra, de platéia assoviando entre solos de um baterista tresloucado, cintilando os dentes de ouro num sorriso de esgar, o coração, as mãos, o suor, tudo a mil por hora. Tem bebops rimando com “on the rocks”, “on the road”, onde um pássaro saxofonista trafega entre as mesas e cadeiras de um bar numa noite na Tunísia, balouçando entre o último chorus de “Scrapple from the apple” e a primeira picada de heroína. Jack Kerouac, Jack Daniels. Tudo por volta da meia-noite.

Mas cabe tudo num retrato em preto e branco de Jimmy Katz. Criatividade e sofrimento, na cara de um Lester Young lânguido em fumaça. Poesia, como uma lágrima de Billy Holiday, um falsete de Sarah Vaughn, um inocente be-bap-boo-loo-bee de Ella Fitzgerald e a bochecha inflada de Louis Armstrong. O jazz também toca no lado ensolarado da rua. Tem vida. Tem caráter. Um joir de vivre. Tem Duke Ellington, um maestro negro e tão dândi quanto um Sinatra, magnífico no pôster autografado. Sim, o jazz tem também um glamour.

Uma estirpe de socialite. Sangue azul, de músicos de smoking tocando em coquetel regado a champanhe. Até uma dor de cotovelo amarga, no imprescindível balcão polido de um bar, é a coisa mais chique quando refletida no fundo de um copo de Johnny Walker, ao som de Chet Baker. Tem um eco de brilho gelado, azul, de um trumpete ao longe, e o tão desejado beijo de uma loira estonteante em vestido de gala. “You must remember this, a kiss is still a kiss”. Uma elegância de vinheta de Supercine.

O jazz, com suas ideias, conceitos e preconceitos, é mais que uma música. É um jeito de pensar a música. É uma poética, resultante de uma história social, econômica, intelectual – do século passado e deste. Música com cacife, pai certo, certidão de nascimento. No século XIX já havia resquícios dele no ragtime dos salões burgueses e nas bandinhas de rua de New Orleans, mas só foi se batizar mesmo nos anos 20, dos primeiros dixielands gravados. Tem os anos 30, das big bands e seus crooners. Tem os anos 40, com o pós-guerra e o bebop. Tem os anos 50, do cool jazz. Tem os anos 60, com Coltrane, ilimitado, free jazz. Tem os anos 70, lisérgicos, delirantes com a fusão de Miles Davis, funk, rock, Cuba e bossa nova. Tem os anos 80, da eletrônica e do videoclipe. Tem os anos 90, que vai do hip-hop à world music. E tem o século XXI, onde está tão diluído que está difícil dizer onde ele está (ou não está).

Eu continuo dizendo que toco jazz. Mas só quando não tem esse dilema de ter que explicar o que é jazz antes de tocar. Senão é muita coisa.

*publicado no dia 22/4, na Folha de São Carlos, na coluna ETC&Jazz do caderno de cultura "Moitará".

4 comentários:

  1. Nossa, parabéns pelo texto, gostei muito!

    Já recebi pelo correio o livro que sugeriu "O que é música" do JJ de Moraes.

    Abç!

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  2. Legal rodrigo, obrigado. Te falei sobre o livro porque, no fundo, tudo o que você falar sobre música acabará na questão da subjetividade, que começa no jeito de ouvir. Aliás, toda a minha discussão sobre música, filosofia, vida, vem do entendimento de que o ritmo com que as coisas acontecem, a forma com que se harmonizam e a sua disposição estética ao longo do tempo (ritmo, harmonia, melodia) só podem ser percebidas como arte e beleza se tivermos ouvidos para isso. Teve um francês, que radicalizou a música no séc XX, que disse: "o único instrumento musical é o ouvido".

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  3. Hahha, bicho, show d bola esse tópico hein! Sei exatamente do q vc tá falando, hehehe, descreveu perfeitamente aquela situação de explicar o som, hehe...Po, vou t colocar nos meus links tb e vou seguir ai hein!!!

    Continue escrevendo, tudo d bom!

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  4. Obrigado Fernando, seu blog também já tá indicado aqui. Abraço.

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