13 julho 2009

Rádio sem tempo para escutar






Vê se encontra um tempo
pra me encontrar sem contratempo
durante algum tempo

José Miguel Wisnik / Jorge Mautner

O rádio FM de hoje é um retrato sonoro da falência da escuta. É feito para ouvir entre tarefas, alimentar-nos de sons afinados com as máquinas políticas, culturais e sociais hegemônicas. O rádio é como o som do nosso "inconsciente maquínico", conceito de Felix Guattari para explicar como a linguagem, o pensamento, o desejo e o self se interpenetram de acordo com sistemas que estão "fora" do indivíduo - o capitalismo, a gramática, a política, a ética.

O cérebro cria a linguagem, ou a linguagem cria o cérebro? O homem obtém seus objetos de desejo e consumo por meio dos negócios da economia capitalista, ou é a economia capitalista quem consome homens e negocia desejos em troca de sua existência infinita? Até que ponto o inconsciente pode ser entendido apenas pelos mecanismos descritos por Freud ou Lacan e não por Nietzsche, John Stuart Mill ou Hollywood?

Guattari nos mostra que a linguagem - por fim, o próprio pensamento e o inconsciente - recorre a signos ou significados que fluem em uma economia de poderes simbólicos, distribuídos na sociedade. Poderes do inconsciente, poderes da mídia, poderes da ciência, poderes da religião, cada um dominando partes da estrutura da linguagem, até que não se saiba mais o que pensa ("o que ou quem em mim pensa?") de forma independente.

O rádio FM é a materialização deste conceito de dominação da linguagem em forma de som. O rádio FM nos mostra um mundo sonoro vibrante, ágil, que tenta esticar sua dimensão linear ao máximo, elevando ao quadrado os volumes, massas, andamentos, fortíssimos, criando a ilusão da rapidez da informação. É som - conceito puro e abrangente -, porém marcado pelos signos do capitalismo pragmático ("time is money", cada segundo é cobrado pelo anunciante), da falsa objetividade jornalística (na voz pura e limpa do disc-jóquei que apresenta as notícias do showbizz com uma velocidade frenética), do consumo voraz (escute hoje o novo sucesso da hit parade que amanhã será esquecido). Sem silêncios.

Se o rádio FM apela para tais artifícios e jamais rompe essa estrutura - disc-jóquei, música, notícia, apresentador, vinheta, anúncio, "as dez mais" e etc -, é porque a palavra rádio que se reproduz no "inconsciente maquínico" de todos nós já se consolidou como tal. O rádio, que sempre teve a função de nos conectar, de nos religar (como a religião, que vem do latim religare) a todos por meio de seus sons, também passou a nos usar. Música? Claro, mas sempre com "um oferecimento de sabonetes Palmolive". Sempre nos dizendo o que está no topo das paradas. Informação? Lógico, pois sempre entre um anúncio e outro, entre a casa e o trabalho, entre o térreo e o décimo andar, dá tempo de ouvir a última fofoca sobre Any Winehouse.

Segundo Janete El Haouli, pesquisadora incasável do rádio, persiste a dúvida se precisamos limpar o rádio ou limpar a escuta. Assim como o inconsciente maquínico se refere ao rádio como uma "grade" de programas de música, anúncios, vozes sem corpo, também entende muito pouco de escuta. Inconscientemente, pensamos a escuta como um sentido menor, subordinado à visão.
O educador e filósofo Rubem Alves propõe oficinas de "escutatória" como medida para resgatar o sentido da escuta, em oposição às oficinas de oratória que ensinam todos apenas a falar.

Liberar a escuta pode liberar o rádio, fazer com que o religare passe a funcionar não apenas dessa maneira opressiva e barulhenta das FM´s, mas que traga novos afetos para a prática de ouvir/produzir rádio. Religare como valorização da reconexão entre os sons e seus territórios (desterritorializar e re-territorializar, como quer Guattari, deslocando sentidos para criar novos conceitos, artes, filosofias). Religare como a infantil brincadeira de “ligar os pontos” entre sons provocativos do rádio, descobrindo aos poucos um grande desenho infinito entre um tracinho e outro, um universo inteiro cabendo entre dois sons. Religare como religião (ou quase), como uma liturgia da escuta, transformando o ato de ouvir em ritual para os ouvidos, recuperando um certo sentido do sagrado que os sons perderam na sociedade pós-industrial. Religare como o reencontro entre o tempo da música, o tempo do poema, o tempo circular do rádio (ou seu tempo eterno), com o tempo do relógio, do cotidiano, como um reajuste de contas entre o tempo do ouvir e o tempo do viver.

5 comentários:

  1. Para começar isso bem que as aulas de música deveriam retornar à grade curricular no ensino fundamental e médio.

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  2. Com certeza a música é uma arte que está excluída das aulas de educação artística há muito tempo. Talvez isso tenha dado mesmo brecha para que ouvidos mal-treinados passassem a ser escravizados pelas máquinas simbólicas contemporâneas.

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  3. Durante muito tempo o ensino de música esteve fora da grade curricular. Na época em que estudei no ginásio (1980) encontrei professoras que não eram musicistas mas que nos incentivavam a escutar. Sofremos também por um motivo mais profundo....desde Aristóteles o sentido mais privilegiado é a visão. A música, e as artes de um modo geral, por não ser uma linguagem instrumental, ou seja, não posso pedir um copo d'agua tocando um acorde, é considerada como uma coisa menor. Não podemos esquecer que vivemos em um mundo utilitarista!!!

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  4. Sem dúvida que a valorização do caráter instrumental das artes (artes plásticas em favor do design industrial, artes visuais em favor da publicidade, etc) fez com que, ao longo do tempo, até o próprio rádio passasse a ser encarado menos como uma forma de manifestação artística e mais como uma ferramenta de comunicação. Vejo nos manuais de radiojornalismo como a estética do som é praticamente inexistente, inútil, em favor da clareza da mensagem. Essa instrumentalização dos meios é o que torna a comunicação cada vez mais pobre, rasa e fútil. A escola, com aulas de música ou sem, infelizmente reproduz essa tendência ao formar apenas candidatos a banco de cursinho ou futuros freqüentadores da fila do seguro desemprego.

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  5. Ola amigo muito show seu blog parabens gostaria de compartilhar os meus blogs deixo uma link para voce dar uma olhada espero que goste

    http://deep-musik-blues.blogspot.com.br

    Boa musica para nos

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