03 abril 2009

A primeira paulada a gente nunca esquece



Fuçando entre CDs, sozinho em casa, tentando organizar o arquivo musical, lembrei de quando passei a ser um comprador frenético de discos na adolescência. O dinheiro que ganhava aos quinze anos, quando eu já tocava teclado em jantarzinhos fajutos a troco de nada, era todo "aplicado" na criação do acervo.
Entre tantas escolhas disponíveis num mercado recém-aberto às importações (eram os anos 90 pós-Collor), eu ainda não sabia direito o que era jazz mas queria sentir o gosto da fruta. Foi então que passei por uma prateleira do Carrefour e vi um objeto que me encantou. Aquilo parecia traduzir meu abstrato conceito de música improvisada até então.
Com o título "Live in Montreaux", a capa do CD trazia uma ilustração estilizada de quatro músicos em círculo, a postos em seus coloridos instrumentos - um piano de cauda azul, um inédito baixo acústico branco, uma bateria dourada - além de um sax tocado por um corpulento corcunda, todos sobre um improvável palco amarelo cuja boca de cena dava para um vermelho infinito.
À parte o detalhe de que eu não conhecia o nome de nenhum dos quatro músicos ao lado do título, tinha a impressão de que tudo o que eu quisera saber sobre música e não conhecia poderia me ser mostrado por aquela pequena caixinha, disponível por 14,99 reais (uns cinquenta reais hoje), encapada naquele esquisito design "chique para as massas", em uma época onde ainda achávamos que CD era uma tecnologia alienígena (minha família tinha comprado um CD player a menos de um ano, e eu já estava ali querendo ouvir coisas sofisticadas e caras, que moleque abusado, agora só faltava essa, um esteta, um conoisseur, dentro de casa).
Ainda me lembro de enfiar o disco na gavetinha do três-em-um Sony (que durou uns bons 15 anos após passar pelas mãos de três adolescentes). A primeira faixa só continha aplausos e uma apresentação dos músicos pelo diretor musical do Festival de Jazz de Montreaux, Claude Nobs. Então começou um som despretensioso, os instrumentos entrando devagarinho, como se estivessem aquecendo os dedos. O piano de Chick Corea, dedilhado de uma maneira monkiana e pós-moderna, deu os acordes iniciais de "Hairy Canary", uma intrincada melodia cromática que foi tocada em uníssono logo em seguida por toda a banda. O som áspero e pungente do sax de Joe Henderson deu um choque de 10 mil volts no meu cérebro. Quando o baixo e a bateria entraram junto, fiquei tonto. Nunca havia ouvido nada parecido.
Era uma paulada atrás da outra. Eu estava sendo "massacrado" por aquela energia estranha, azul, densa, quente, numa noite de quinta-feira que mudou minha vida. A terceira faixa, "Folk Song", me conquistou pela latinidade embutida nas harmonias dissonantes de Corea e no ritmo inteligentíssimo do baterista Roy Haynes, que sabe conduzir e quebrar o swing de cada tempo como um verdadeiro melodista na percussão. Fiquei tão profundamente encantado pela melodia que persegui por anos a fio essa partitura para tentar entender o que deixava aquele tema tão alegremente triste. Depois de encontrá-la transcrita na internet, não saiu mais do meu repertório.
Longas palmas. Em seguida, a introdução de "Psalm", só de piano, fez desmoronar tudo o que eu sabia de teclado. Com virtuosismo criativo, Corea fica mais de quatro minutos em um universo paralelo em que mistura timbres e tintas harmônicas, ataques de meio-pedal e legatos, escalas e clusters de notas duras, modos frígios e acordes politonais, até repousar novamente no riff de introdução do tema, uma valsa de melodia sofisticada, baseada na harmonia quartal (outra novidade pra mim até então, que não fazia nem idéia de que se podiam montar acordes com notas dispostas em outros intervalos que não terças). Uma aula de hard-bop.
O tema complexo de "Trinkle Twinkle" (do mestre Thelonious Monk) permaneceu inalcançável pra mim ainda alguns anos depois daquela primeira audição. O baixo de Gary Peacock rodeia algumas notas do tema junto com o piano e o sax, acompanhando o conjunto sem deixar de conduzi-lo, redesenhando o papel do baixista dentro de uma formação, onde geralmente o instrumento só faz um "dum-dum-dum-dum" por trás da harmonia e melodia. Um gênio, de som encorpado e preciso.
Ouvi o disco inteiro em uma sentada só. Cole Porter, solos de bateria e uma balada ainda se seguiram, mas eu já estava nocauteado. Demorei anos pra curtir aquele disco inteiramente, me deliciando com a fluidez daquela música, decorando cada solo, entendendo como a interação do grupo é tão importante como o destaque individual do solista. São camadas sobrepostas de intenções, dinâmicas, tensões, disposições, onde não importa muito o que se está fazendo, e sim como se está fazendo.
Ouvir como cada músico estimula e é estimulado, como age e como reage, até o ponto em que se diluem os conceitos tradicionais de autor, composição, ritmo, melodia e harmonia e só se ouve a criação, pura e concreta, realizada enquanto é sentida, pensada enquanto é posta em prática - esse é o grande prazer que aprendi ao descobrir o jazz com "Live in Montreaux". Mesmo que tenha sido na porrada.

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