03 junho 2011

A música e a desnecessidade do homem





















Há todo um conjunto de coisas, atos, fatos, afetos e percepções que nos levam a acreditar que, no mundo de agora, acabaram-se as grandes narrativas. Dizem que tudo se funde em pequenas conectividades banais. Lemos na internet uma notícia sobre um tsunami de proporções catastróficas, ao mesmo tempo acompanhamos o twitter do Ashton Kutcher dizendo alguma bobagem sobre o mesmo assunto, ao mesmo tempo em que um vídeo supercomentado na internet também vira pauta pro telejornal, que fecha o dia com o resumo da tragédia ou o comentário sobre a mais "nova banda na internet". Pronto, página virada, esperamos amanhã para flanar pela web mais uma vez, flutuando sobre os acontecimentos mais comezinhos e os mais aterradores enquanto aguardamos que alguém faça um comentário no tópico que abrimos no Facebook.

Alguns dizem que isso se chama comunicação na era pós-moderna. E há ainda alguns que dizem que, por trás de milhares narrativas despretensiosas e sem-graça como essa, a grande narrativa que resta é a que descreve a desnecessidade do homem. Não frente à natureza, mas frente a seu próprio desejo. De tanto desejar expandir-se, ultrapassou-se. O homem descreveu, criou, modificou, intensificou, reordenou, atualizou tantas coisas que, em meio delas, tornou-se obsoleto.

Sendo assim, o mote agora é: o que não tem utilidade é descartável. A jovem britânica que se matou por não conseguir emprego percebeu (e não suportou) sua obsolescência em um mundo onde as pessoas devem ter um apelo comercial semelhante ao de um produto - prático, rápido, agradável e, de preferência, barato. O fato (que querem nos fazer acreditar) é que o homem se tornou obsoleto. Fazer música pra quê, então?

A escuta musical, fonte do prazer da música, segue a mesma tendência decadente. A música do século XX, radicalmente diferente das músicas anteriores, nos mostrou que não interessa o que se faz na partitura, no palco, nos instrumentos: a música acontece no ouvido de quem escuta (acho que quem disse isso foi o Pierre Mariétan). Todo o jogo estrutural, de silêncios, contrapontos, harmonias ou ruídos presente numa composição só se realiza um único momento: quando está na cabeça do compositor e viaja até a cabeça do ouvinte. Fora isso, só há "teatro" musical, que nos ajuda a absorver a música por outros buracos do corpo, como a pele e os olhos, mas não é o essencial.

Acho que naquele livrinho simples e interessante  "O que é música?", daquela coleçãozinha "Primeiros Passos", o pianista Jota Moraes fala sobre os três jeitos de ouvir - ouvir com o corpo, ouvir com o coração, ouvir com o cérebro - e como essas três escutas se integram no sujeito (por via da educação musical, talvez). Talvez hoje, na teia complexa de relações entre mídias e sujeitos, onde a informação musical praticamente invade nossos corpos por vários meios disponíveis, esses três "ouvires" tenham se convertido numa coisa só, plana e desintegrada, focada seletivamente apenas na utilidade da música e em sua identificação com um gosto musical acanhado ou subdesenvolvido. "Essa é pra dançar, então eu gosto", dirão alguns. "Essa outra é pra cantar junto e chorar, então acho bonito", talvez, ou ainda, "essa é pra pensar", portanto "não gosto muito".

Na música popular, a percepção musical foi sendo paulatinamente desviada para o "teatro" da música. Porque todo o prazer da escuta - de desvendar conexões entre sons, compreender conceitos por trás das redes de sons das composições e permitir uma imersão completa na música -, foi sendo acompanhado e, aos poucos, substituído pelo refrão fácil, pelo megashow, pelo videoclipe (primeiro na MTV, agora é direto no youtube, como é o caso da tal Banda Mais Bonita da Cidade e sua música de seis minutos de um refrão só). Tudo o que foi criado para reforçar a experiência musical acabou ultrapassando-a. Portanto, escutar hoje já não basta - tem que ver, sentir, interagir. O homem, para ver-se reconhecido na arte, precisa ser parte da obra, e não mais um ouvinte ou espectador.

Ver, ver de novo, fazer download, cantar junto. A música se realiza no ter ("baixei" no iPod), no twittar ("linkei" o vídeo), e no seu gesto corporal, no dançar, no "tira o pé do chão". Voltamos aos primórdios, quando só havia o homem, sua voz e seu tronco de árvore, fazendo sons pra outros homens com seus troncos e vozes - nenhuma linguagem envolvida, nenhuma arte, nada a dizer, só criar movimento.

Talvez essa nova postura frente à arte seja a forma de reagir à presença quase agressiva da tecnologia, como se as "extensões" do homem (como descreveu brilhantemente McLuhan as novas tecnologias comunicacionais) tivessem se tornardo tentáculos com vontade própria. Talvez essa nova escuta seja uma reação para tentar afirmar a função ritualística e social que a música tinha na era das cavernas e ainda tem nas tradições musicais folclóricas. Talvez seja apenas uma simples fuga e busca de consolo em uma arte fácil, descompromissada, despojada, pronta também para consumo, como um capuccino quentinho numa noite fria ou um tarja preta "light" pra permitir o sono.

Seja o que for, é sinal de que a tecnologia produziu um efeito contrário à promessa que nos havia feito. Em vez de nos levar ao crescimento e desenvolvimento como humanidade, nos encaminhou à barbárie, à vida compartimentada, corrida e sem graça que busca o mero utilitarismo imediatista para satisfazer suas demandas de prazer, até mesmo quando se fala em arte. Para esquecer a dor, rave. Para enganar a dor, sertanejo. Para pular, axé. Pra cantar junto, pagode. Pra seduzir, funk. Pra ajudar a pensar, estudar ou malhar, iPod. Música igual remédio. Tudo o que se construiu na arte musical nos últimos dez séculos foi jogado no lixo em nome de quê?

Se não há mais grandes narrativas, jogue-se fora toda a música nova, música de invenção, música improvisada, jazz, vanguardas estéticas, barroco, neoclassicismo, e todas as outras linguagens, estéticas ou gêneros musicais que ativam a "escuta com o cérebro", e passemos a consumir somente a música de agora, entregue via internet acompanhada de videoclipes caseiros e refrões desafinados. A teoria da não-existência das grandes narrativas - e da narrativa que diz que o homem é obsoleto - só serve para justificar esse estado pobre e caótico de coisas, onde o homem é apenas mais um objeto que interage com outros objetos esperando alguma retribuição, carinho ou consolo.

Começou a guerra entre o homem dito "obsoleto" e o pós-humano. Solução (utopia)? Ainda acho o homem necessário. Talvez só tenhamos que descobrir como usar as tecnologias para promover o humanismo, e não usar o homem para promover a tecnologia.

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