06 outubro 2010

Crítica do jazz, uma linguagem em transformação














O jazz é elástico. O termo ganhou definitivamente o poder de conferir ao objeto denominado por ele o status de música de nível, música cabeça, música boa. E é elástico porque cabe em muitas músicas. Os limites entre um gênero e outro estão cada vez mais tênues, e os críticos vêm tendo dor de cabeça para enquadrar certas bandas ou músicos neste ou naquele estilo de jazz.

Sim, sempre houve os guetos, rótulos como progressive jazz, easy-listening jazz, soul jazz, NUjazz, etc, mas estão cada vez mais dispensáveis (ou inúteis) para certas frentes do jazz. Aliás, "frentes" é um termo mais adequado devido ao próprio caráter de transformação que parece ser inerente ao gênero, sempre em movimento rumo a novas formas de expressividade musical, como  gramáticas e sintaxes que se vão imiscuindo em uma linguagem.

Fazer a resenha de um CD de jazz significa avaliá-lo dentro de alguns aspectos que dizem respeito às especificidades e qualidades que uma gravação de jazz deve ter. A pergunta é: quais são elas? Improviso? Sonoridade pessoal? Padrão "pergunta-resposta"? Forma? Escala blues? Swing? Devoção à tradição? Creio que tudo isso junto, e mais o senso de que se "o que se quer fazer é jazz", uma intencionalidade, uma certa tendência a querer unir todos esses aspectos em um estilo musical e buscar uma voz expressiva que se aproxime de todos esses conceitos.

Escrevo isso após ouvir meu quarto programa que acabou de ir ao ar agora. Tentando traçar uma certa linha "evolutiva" na escolha do repertório, selecionei na seqüência dois artistas que se enquadrariam no que pode se chamar de jazz fusion: "Westchester Lady" (de Bob James, do álbum "Two"), seguida de "The song goes on" (de Herbie Hancock, de seu último "The Imagine Project", com Wayne Shorter, Chaka Khan e Anoushka Shankar). E ao ouvir as duas canções, fiquei pasmo. Como pode ser? Duas músicas tão díspares, com concepções estéticas tão distintas, sendo "engolidas" pelo mesmo rótulo?

As "vozes" musicais de Bob James e Herbie Hancock (ambos pianistas, ambos encantados pela instrumentação eletroacústica, ambos cheios de influências da black music e do funk) são nitidamente a maior diferença. Enquanto Bob James filtra a intensidade do black e do funk pelo seu toque leve e seus arranjos magistrais para cordas e orquestra - atenuando o calor da expressão e chamando atenção para as sutilezas e interações entre groove e fraseado - Herbie Hancock potencializa a expressividade pura, importando-se apenas em interagir com o sax de Shorter e com as vozes de Khan e Shankar, sob uma "pseudo" raga indiana produzida por tablas e cítaras mixadas a programação eletrônica. Se fôssemos levar em conta os aspectos acima citados, teríamos uma tabela assim:

                                    Bob James         Herbie Hancock
Improviso?                         OK                       OK
Sonoridade?                       OK                       OK
Pergunta e resposta?           OK                       OK
Forma?                              OK                       OK
Swing?                               OK                       OK
Blue note?                          OK                       OK (e outras "notes" também...)
Tradição?                            ?                             ?  (qual tradição?...)

Se formos pensar na tradição como uma seqüência do jazz pós-Coltrane, pós-Miles, e na devoção aos cânones do bebop, swing era ou hard-bop, aí fica difícil... mas se pensarmos na tradição da black music, do funk, da música pop, acho que também é um "OK" pros dois. E é tudo fusion. Tudo jazz.

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