16 junho 2010

Serenata, em várias versões

Todas as nações têm seu cancioneiro básico, espécie de arcabouço de sons e melodias a que todos os compatriotas se referem com saudosismo ou ternura. Músicas que, apesar de terem sido compostas por gente de carne e osso, parecem fazer parte do próprio ar, trazidas por vento, soando em tardes de carnaval, no assobio do guarda em noturnas boemias, perdidas no alto-falante de algum radinho AM em alguma rodoviária.

Essas músicas estão sempre nos trazendo emoções que nos são familiares, constituindo ilhas de terra firme em meio a oceanos de sons caóticos e muitas vezes agressivos da vida urbana. Essas canções parecem sempre ter feito parte de nossa existência, já estavam lá antes que Cabral pusesse os pés por aqui, sambas-enredo prontinhos antes mesmo de inventarem o Carnaval, bossas-novas falando da Garota de Ipanema antes que ela tivesse nascido, como trilha sonora difusa entre as cenas cotidianas vividas por cada um de nós.

"Brasil, meu brasil brasileiro", "Isso aqui ô ô", "Não posso ficar, nem mais um minuto com você, cas cari gudum, cascarigudum", "Felicidade, fooooooi simbora..." (respectivamente: "Aquarela do Brasil", "Isso aqui o que é" ambas de Ari Barroso; "Trem das onze", de Adoniram Barbosa; e "Felicidade", de Lupicínio Rodrigues). Canções que tiramos da cartola quando queremos embalar uma roda de cantoria, mesmo sem saber direito a letra, mas com a melodia mais do que decorada.

A mesma coisa fazem os artistas. Quantas versões já ouvimos pra "Lamentos" ou "Carinhoso" (ambas de Pixinguinha). Nos EUA também os cantores, instrumentistas, compositores e arranjadores recorrem a este cancioneiro onipresente e eterno para elaborar novas possibilidades de interpretação. Há uma canção, chamada "Serenata", composta por um desses autores prolíficos e universais, chamado Leroy Anderson (1908 - 1975).

Famoso por criar pequenas obras orquestrais, leves e com melodias inesquecíveis, Anderson foi o primeiro artista da música instrumental a vender 1 milhão de cópias, tamanha era a popularidade de suas peças.


A famosa cena do comediante Jerry Lewis datilografando foi elaborada sobre a música "The typewriter", de Leroy Anderson

Suas músicas tinham esse caráter simples, de extrema elegância e bom gosto, com aquela qualidade de "grudar" e não sair mais da cabeça. Ou então de parecer como uma dessas canções eternas, que sempre existiram antes mesmo de alguém ter pensado em compô-las. Resultado de uma sensibilidade para dar à melodia contornos surpreendentemente inovadores e belos dentro de uma estruturação harmônica por vezes previsível, mas nunca pobre ou simplista.

Uma de suas composições mais famosas - e mais tocadas por artistas de diferentes estilos nos EUA - é "Serenata", criada originalmente como um bolero de matiz espanhol em 1947. A música recebeu letra de Mitchell Parish em 1949. Desde que a ouvi pela primeira vez, há uns cinco anos, tocada por Wayne Shorter em um belíssimo arranjo para sopros, fiquei apaixonado por sua melodia. Fiz então um pequeno apanhado de várias 16 diferentes interpretações dessa canção por diferentes de artistas do jazz - com exceção da presença da cantora popularesca Julie Joy que, apesar do nome, é brasileira e canta a letra em uma versão romântica, em português -, mostrando como o arranjo pode ser modificado de mil maneiras diferentes, mas sempre destacando a força da melodia de Anderson.O arquivo contém ainda uma partitura do tema (lead sheet, retirada do livro "Jazz Ltd."), em formato PDF.

1) Leroy Anderson ("The Leroy Anderson Collection", 1988), regendo a versão original, com introdução e final que lembram um pasodoble espanhol, em tom menor;
2) Joe Pass ("Eximious", 1982), em versão trio, com muito suingue num arranjo meio "pseudobossa", mais rápido;
3) Nat King Cole ("Nat King Cole Sings, George Sharing Plays", 1962), acompanhado do lendário George Sharing ao piano, cantando em ritmo de bossa-bolero, com sua nitidez e elegância de sempre;
4) Quincy Jones e sua "Big Band Bossa Nova" (1962), puxando o tema num samba-canção com direito a pandeiro. Ele cita num interlúdio os acordes "espanhóis" da introdução original de Anderson;
5) Cannonball Adderley ("Takes Charge, vol.6", 1959), tocando o tema como um bom standard merece: com introdução estilosa, tema suingado e improvisações virtuosísticas;
6) Earl Klugh ("Naked Guitar", 2005), tocando o tema no violão, em versão solo. A clareza de cada nota, o timbre impecável do violão e as surpresas harmônicas que Klugh introduz na canção tornam essa gravação uma das melhores da seleção;
7) Stanley Turrentine e Shirley Scott ("Soul Shoutin'", 1963) tocam o tema com muita ginga - Stanley no tenor, Shirley no órgão Hammond B-3 são uma dupla imbatível no quesito suíngue;
8) George Sharing ("Latin Affair", 1958) tocando o tema com uma levada latina. Um pouco desconcertada, mas destacando os famosos "block chords" de Sharing na improvisação;
9) Larry Goldings ("Caminhos Cruzados", 1994) traz o tema novamente para o universo do órgão Hammond, passeando pela bossa-nova com sutileza impressionante;
10) Julie Joy ("Jóias de Julie Joy", 1958) foi uma das últimas cantoras da época de ouro do rádio a atingir algum sucesso. Nessa interpretação estilo "rumba" pra terceira idade, fica bem clara a intenção dramática, estética dominante na época pré-bossa nova. Vale pela curiosidade de ver a música cantada em português;
11) Alan Broadbent ("Round Midnight", 2005) faz um estrago na música. No bom sentido, é claro. Seu piano tem os voicings mais dignamente bem-executados desde Bill Evans, e seu improviso é tão límpido quanto a estética jazzística permite sem perder a essência "malandra" do jazz;
12) Cal Tjader ("A Fuego Vivo", 1981) imprime a latinidade nessa versão em que modifica a métrica (toca o tema num afro 6/8). Latin jazz fino;
13) Art Farmer e Benny Golson ("Meet the Jazztet", 1960) dão uma interpretação hard-bop ao tema, começando com um tipo de batida afro 12/8 e improvisando num andamento 4/4 rápido, típico da época;
14) Ray Barretto ("Contact!", 1997) transforma o tema em uma verdadeira explosão de latinidade, com a percussão e o arranjo de metais típico dos "conjuntos" cubanos;
15) Harold Vick e Herbie Hancock ("Watch What Happens", 1967), com sax tenor e rearmonização típica do mestre do piano. A levada de bossa-nova e o "corinho" na introdução deixam a gravação com uma cara meio brega, mas logo o jazz aparece nas improvisações;
16) Wayne Shorter ("Alegria", 2003) faz a melhor reinterpreção do tema, deixando-o com uma harmonia modal que impressiona pela beleza. O arranjo é, de longe, o mais elaborado de todos, com uma introdução de cair o queixo, usando o mesmo motivo da introdução "espanhola" de Anderson, porém num tempo desdobrado e nova moldura harmônica. O piano logo introduz um riff de acordes quartais que dá nova estrutura à música, que soa enigmática, fragmentada, leve e delicada. 

Serenata (Leroy Anderson) - 16 versões (arquivo .rar, 122Mb)

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