31 maio 2010

Jazz, carnaval para os ouvidos

















O jazz nasceu de dia, numa terça-feira gorda de carnaval em New Orleans, acordando a vizinhança com seu choro de trumpete rebrilhando no calor úmido das ruas cheirando a maresia e esgoto. Nasceu no cais do Mississipi, entre carregadores de fardos de milho, pescadores bêbados e prostitutas sorridentes, acompanhado dos gritos eufóricos de trombones roucos, tubas retumbantes, clarinetes histéricos e um tambor repicando marchas, habaneras e valsas crioulas então esquecidas.

Ao meio-dia das paixões entorpecidas e olhos de ressaca, o jazz se punha de pé antes que todos tivessem sequer sonhado em dormir. Os músicos atacavam em cima de carroças, bancos de praça, latas de lixo – tudo virava coreto, e logo seguia como um bloco carnavalesco, invadindo esquinas, calçadas, atrapalhando o tráfego e ensurdecendo a tarde. Acabavam de acompanhar o cortejo fúnebre do último folião, enterrado ainda meio bêbado, tocando solenes gospel songs e spirituals, e logo voltavam a por os instrumentos em brasa, cortando os ares densos das ruas do comércio com os tropéis alegres dos improvisos coletivos sobre ragtimes, dixies e blues.

 Até que chegavam a Storyville, o bairro pagão, loteado por vagabundos, habitado por operários, freqüentado por aventureiros em busca de prazer: música, álcool e mulheres. Pianola, baixo acústico, banjo, tambores e sopros faziam a algazarra no palco, enquanto a “platéia” se divertia ouvindo aquilo tudo à a sua própria maneira, na pista de dança sempre abarrotada, nos balcões dos bares, nas camas esfalfadas de quartos abafados. O jazz vibrava na mesma frequência que os personagens da noite.

O jazz trazia o brilho das ruas ensolaradas para dentro da noite, tornado a madrugada menos solitária. Sentado sozinho na mesa de um cabaré, encarando uma dose de bourbon, com os ombros pesados de responsabilidades, o velho jazzmen sorri quando ouve um solo de Louis Armstrong. Aquele negro bonachão em cima do palco, de olhos esbugalhados, beiços trêmulos e voz impagavelmente rouca toca notas sorridentes ao trumpete, é o mestre da expressão equilibrada entre dor e felicidade. Faz sorrir “de nostalgia”, como diria Noel Rosa.

O jazz nos seus primeiros anos era uma festa da música improvisada. Criação induzida pela diversão, vontade de tocar coisas que ainda não se ouviram, de ouvir coisas que ainda não foram tocadas. Ao vivo e a cores, o jazz fazia dançar, emocionar, se fazia ouvir. O jazz era uma cena – e bem carnavalesca, por sinal.

Hoje o jazz é um rótulo. E colocado na prateleira num setor bem distante de carnaval, outro rótulo. A diversão contida no jazz foi fracionada, pasteurizada, bem empacotada, envernizada, precificada (encarecida). Porém, continua lá, a espera dos foliões para ouvi-la, curti-la, vivê-la. Os rótulos é que nos dizem “não, isso não é para qualquer um”. Os rótulos são colocados sobre os discos, mas acabam é tampando nossos ouvidos.

* publicado na coluna ETC & Jazz da Folha de São Carlos, no caderno de cultura Moitará, no dia 27/5. 

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