27 janeiro 2010

Samba vira tango

















O show Elas por Elas, da cantora Regina Dias, estreou no último dia 20. O repertório é uma coleção das canções de intérpretes que mais influenciaram seu trabalho: os sucessos de Maysa, Márcia, Nana Caymmi e Elis Regina. Música de boa fonte.

Como diretor musical que fui, arregimentei os músicos e montei os arranjos, buscando dar um rumo jazzístico e delicado para as canções - muitas delas já eternas, imexíveis, como "Upa Neguinho". O desafio foi encontrar em cada uma delas uma pista, uma nuance, uma palavra, algo que pudesse sugerir um caminho.

"E daí" (Miguel Gustavo) era interpretada por Maysa como um samba-canção, com um acompanhamento de orquestra um tanto quanto arrastado e pomposo. Quando ouvi a música pela primeira vez, decidi na hora que o arranjo teria que ser bem diferente. Elis Regina já havia gravado a música em um arranjo mais arrojado, mas ainda "sambístico". Pra mim, o ritmo dolente do samba não servia pra emoldurar a canção, que sugere um contexto de opressão, onde o narrador-personagem encontra-se distante de seu objeto de desejo devido a uma proibição fortíssima ("proibiram", no plural, mostra a força do impedimento).

Ouvindo a melodia, pensei no vozeirão de Nelson Gonçalves entoando os primeiros versos ("proibiram que eu te amasse, proibiram que eu te visse, proibiram que eu saísse, e perguntasse a alguém por ti"). Pensei que poderia ser cantada em espanhol, como um bolero. Como seria? Pensei em destacar a forte negação e a presença incontornável do obstáculo que impede o personagem de se unir à sua amada utilizando a marcação "cerrada" do ritmo.

Bolero? Não. Tinha que ter mais "punch".

Por isso, no arranjo do show de Regina, a canção se transformou em um tango - ritmo quaternário caracterizado pela pulsação firme dos quatro tempos ao modo militar, onde as notas deslocadas do baixo é que dão um senso de latinidade. Além disso, a forma de acompanhamento harmônico - com células simples de habanera e acordes derivados da escala menor melódica - destaca a dramaticidade exagerada da letra. O amante enfrenta e desafia os obstáculos ao seu amor de peito aberto ("proibam muito mais, preguem avisos, tranquem portas, ponham guizos, nosso amor perguntará, e daí? e daí?").

Criei ainda um interlúdio que prolonga essa sensação de busca, exacerbando o teor trágico da situação. A segunda parte da letra é cantada em cima de acordes com baixo invertido, em cima da nota mi (Am/E, Bm7(b5)/E e E7b9), causando ainda mais tensão antes da resolução, que acontece após a repetição dos versos "ninguém pode parar meu coração, que é teu, todinho teu" sobre um turnaround I(m) - VI(m7b5) - II(m7b5) - V7(b9).

 

Além dessa explicação teórica do arranjo, a escolha do tango também levou em conta o fato de que o público brasileiro em geral gosta de tango. Tem aquela sensação de que tem algo diferente acontecendo no palco, mas não é algo que esteja fora do escopo de referência de ninguém - não é comum, mas também não é desconhecido ou estranho, o que às vezes acontece em um show de jazz. Portanto, o tango ia dar um toque especial ao show, do tipo "momento exótico". Você se lembra de quantos shows de MPB você foi e que tinham um tango? Poucos né. Mas aposto que, se tinha um tango, você se lembra.

Regina Dias - voz; Murilo Barbosa - piano; Tiago Carreri - violão; Fabiano Nunes - contrabaixo; Marquinhos Froco - bateria.

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