24 dezembro 2011

Música e concretude





















Às vezes me pego sendo enganado pela música. Na televisão, filmes, na rua, no rádio. A música, sendo nada mais que uma organização de sons, barulhos, ruídos, vozes, etc, às vezes investe-se também de uma intencionalidade. Um construto que tem um fim além de ser apenas belo, apenas agradável, apenas arte -, tornando-se um conceito aplicado, uma mensagem, até mesmo uma arma. Armadilha. Armação.

O autor, o compositor, o produtor, qualquem um deles pode agir como um manipulador. Assim como a propaganda de perfume tenta traduzir um aroma por meio de imagens e sons (tradução intersemiótica, já que a televisão ainda não tem a capacidade de estimular o olfato), a música tem a propriedade de sinalizar uma coisa que não existe literalmente, ou de emprestar um significado a algo, ou de simular uma ação - como se narrasse sem palavras. Drama. Comédia. Aventura. Farsa.


O tempo para ou corre. Eterniza o beijo. Emoldura o encontro. Quem assiste a seriados americanos como "Friends" ou "Seinfeld" entende a capacidade da música de marcar a cena - quando, por exemplo, aparece o exterior do prédio, a fachada do restaurante, a panorâmica noturna de Nova York, sempre acompanhadas de uma curta e bem característica vinheta, antes dos atores começarem os diálogos. Prelúdios.

A música também acelera o fluxo da vida, faz tudo acontecer mais rápido. Rocky Balboa ("Rocky", 1976) se prepara para a luta decisiva, que o confirmará campeão mesmo contra um inimigo aparentemente imbatível - a aberração russa Drago ou o negro impiedoso Apollo. Enfrenta a rotina pesada de exercícios e o descrédito da mulher. Mesmo assim, pontuando as cenas de sofrimento, suor e dor, o famoso "Rocky Theme" dá esperança de vencer. Tudo passa rápido. Basta a música, e três meses passam em três minutos. Interlúdios.

Quando a música entra no lugar de alguma coisa, vemos a música "sendo", "existindo" concretamente. Figurando. Lembro do filme "Contatos imediatos em terceiro grau" ("Close encounters of the third kind", 1977) e a famosa sequência de notas usada pelos alienígenas para se comunicar com os humanos. Alguém já ouviu algum som extraterrestre? E música de outro planeta? A verdade é que o compositor John Willians inventou para os ETs uma assinatura sonora, usando notas de uma escala pentatônica. E não deve ter sido por acaso: com sua força ancestral, telúrica, sendo uma das mais antigas escalas musicais utilizadas por vários povos humanos, a escolha produziu um efeito primal, estabelecendo uma poderosa ponte sonora que dá um sabor especial a este filme de ETs (e olhe que eu morro de medo desses bichos verdes...). Desenvolve-se a trama, a música é a própria personagem. Coda.




Além de ter a capacidade de concretizar algo que teoricamente nem existe - afinal, ainda não provaram que os tais homenzinhos verdes estão de fato entre nós - a música também tem o poder de representar sonoramente algo que não tem som. Como o gás de cozinha (preciso comentar?). Ou então bancos. Sim, bancos, essas instituições que nos pedem dinheiro para guardá-lo pra gente. Bancos fazem propaganda. Muita. E não sei se repararam, mas todos encerram seus vídeos promocionais com um pequeno jingle - uma assinatura, uma audiomarca - que ajuda na identificação e fixação do nome do dito-cujo. Tem até gente fazendo cover de jingle de banco. Finale.

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