Estimo que já fiz o trajeto Araraquara-Londrina de ônibus cerca de 150 vezes em 10 anos. Posso dizer tranquilamente que, nesse período, observei uma modificação nos tipos de som que escutamos dentro do ônibus.
Antes havia mais
barulho sendo produzido por pessoas do que por coisas. Conversas de
madrugada, malas sendo acomodadas, pacotes abrindo, o terrível
amassamento dos sacos de salgadinho, crianças gritando – todos
ruídos incômodos, mas que interrompiam o silêncio por pouco tempo,
até que alguém pedisse para baixar a conversa, que controlasse a
criança, etc. Mas percebo que hoje há nos ônibus mais sons
eletrônicos do que de gente, devido aos notebooks, videogames
portáteis, mp3 players e devido a eles, os famigerados celulares
sem fone de ouvido.
O celular mudou a forma
das pessoas se comunicarem. É um aparelho que propicia um elo
individual, atomizado, ultrapessoal do indivíduo com o resto do
mundo. E essa extrema personalização parece ter mudado também a
percepção dos seus usuários em relação às outras pessoas que
estão em volta. Se antes o toque do celular só atrapalhava concerto
de música clássica, hoje são suas músicas em formato mp3 que
causam estrago.
Aposto que, com a
exceção dos boomboxes (aqueles sound-systems portáteis
que algumas turmas usavam no final dos anos 80 para levar suas
músicas para a rua), você nunca viu ninguém ouvindo rádio em
público sem fone do ouvido (desconte os radinhos de pilha em dias de
futebol). Pois é, o celular que toca músicas é o novo boombox.
O povo está à vontade para usufruir de suas canções favoritas e
dividi-las com todos em volta, sem se preocupar o gosto musical
alheio. E mesmo quando o repertório é de nosso agrado, quem quer
ouvir um Beethoven, um samba de Paulinho da Viola ou um solo
frenético de John Coltrane às duas da manhã num elevador? Ou num
avião? Ou ônibus?
Cada estilo musical tem
seu público específico, mas já fiz viagens inteiras sendo “platéia
forçada” de música sertaneja, pagode, música eletrônica, música
evangélica, e outras mais, via celular. O triste é que poucas vezes
vi outras pessoas reclamando disso. Se uma criança chora,
imediatamente há pessoas fazendo queixas. Se alguém ronca, sempre
há alguém para dar cotoveladas. Mas, por incrível que pareça, são
poucos os que se incomodam com os terríveis agudos da música dos
celulares. O que está acontecendo com os ouvidos dessas pessoas?
Poderíamos arriscar
várias explicações para esse fenômeno. Poderíamos brigar por
nosso direito ao silêncio no ônibus, mas quase todas as tentativas
que levei a cabo não surtiram efeito (aliás, nunca conte com o
motorista como um árbitro justo nestas questões de convivência
civil). Prefiro aqui dar uma dica valiosa. Contra a invasão dos
celulares sem fone de ouvido, me armei com um aparelho eletrônico
muito eficaz: um celular, com fone de ouvido. Afinal, meu gosto
musical não é melhor do que o de ninguém, mas é só meu e eu
respeito o ouvido do outro. Mesmo que o outro não respeite o dele
próprio.
*Texto publicado na Revista Perfil Araraquara (fev/2012)
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